Seja Bem-vindo, Sr. Nogueira

A sala em que o homem aguardava ser chamado, apesar de pequena, era bem aconchegante. As paredes eram pintadas com uma cor leve que ele não conseguia identificar com precisão, e a poltrona na qual estava sentado era mais confortável que muita cama que experimentara por aí. As paredes estavam repletas de quadros com fotografias de pessoas desconhecidas, todas com um belo sorriso no rosto e um olhar de esperança e satisfação. Aguardava já havia uns 10 minutos pelo menos, e segurava em sua mão uma das misteriosas cartas que vinha recebendo em sua casa nas últimas semanas:

“SR. NOGUEIRA,

A SEU SONHO, NOSSO SONHO TEM O PRAZER DE INFORMÁ-LO QUE SEU PERFIL FOI SELECIONADO POR NOSSA EMPRESA PARA RECEBER NOSSOS SERVIÇOS.

SERVIMOS SOMENTE UM SELETO GRUPO DE PESSOAS POR ANO, E TEMOS COMO OBJETIVO REALIZAR SEUS SONHOS A CUSTO PRATICAMENTE ZERO.

VENHA NOS FAZER UMA VISITA.

ANDERSON GIBRALTAR

P.S.: ESSA PROPOSTA É VÁLIDA ATÉ 19 DE MAIO DO CORRENTE ANO.”

E lá estava ele agora, Sr. Nogueira – o homem ria toda vez que via seu nome escrito desse jeito, já que nunca havia sido chamado assim por ninguém -, há dois dias do prazo final, na recepção daquela empresa que jamais ouvira falar antes (nem as buscas pela internet o ajudaram), curiosamente aguardando a explicação de todo aquele mistério.

– Sr. Nogueira – ouviu uma voz chamando enquanto novamente abria um leve sorriso de satisfação – faça o favor. – completou a recepcionista indicando o caminho a ser seguido.

Ele se levantou imediatamente e prosseguiu em passos largos até a sala indicada. Lá se encontrava um homem que aparentava não mais que 40 anos de idade, vestindo um suntuoso terno de grife, gel nos cabelos e gravata de seda. O homem ficou em pé, revelando uma altura imponente e um largo sorriso receptivo.

– Seja bem-vindo, Sr. Nogueira, é um prazer conhecê-lo pessoalmente. – disse o homem levando sua mão ao encontro da dele – Eu me chamo Anderson Gibraltar (Nogueira reconheceu como sendo o nome que constava na carta) e eu sou o fundador/presidente dessa organização, a SEU SONHO, NOSSO SONHO. Nós estamos no mercado há mais de 20 anos realizando os sonhos daquelas pessoas que nós consideramos merecedoras do nosso serviço. Bom – disse o homem interrompendo seu próprio raciocínio -, posso ver em seu rosto que o senhor está repleto de perguntas para fazer, portanto, acho melhor parar de falar e esclarecer suas dúvidas.

– Para ser sincero, devo admitir que estou aqui por mera curiosidade – confessou Nogueira percebendo pela feição de Anderson, que não relatava nenhuma novidade para ele -, pois não entendi exatamente o que vocês podem fazer para me ajudar.

– Sr. Nogueira, em primeiro lugar, o senhor deve entender uma coisa: Nós sabemos tudo a seu respeito. Tudo mesmo. Desde seu time de futebol, cores preferidas, tipos de mulheres, até a aversão que o senhor tem por alguns tipos de tecidos. Não há nada que possa me relatar aqui, que eu já não tenha lido nesse seu profile que me foi entregue – afirmou enquanto abanava uma grossa pasta azul-marinho com as mãos. – Nós da SEU SONHO, NOSSO SONHO sabemos, por exemplo, das cinco pontes de safena que o senhor possui em seu coração, e como essas operações, apesar de parcialmente cobertas pelo seu plano de saúde, deixaram o senhor afogado em dívidas gigantescas.

– Então, vocês também sabem que não tenho um só real para dar-lhes em pagamento, não sabem? Que todo dinheiro que recebo da minha aposentadoria por invalidez, somado ao salário que tiro mensalmente com minha barraquinha de hot-dog clandestina, já estão totalmente comprometidos, certo?

– Sr. Nogueira, sabemos até sobre os 5.000 reais que o senhor recebeu de herança pela morte de sua tia Matilda, e que repousam nostalgicamente escondidos debaixo de seu colchão.

Os olhos do homem arregalaram-se transmitindo todo espanto que sentia naquele momento. Nunca contara nada à ninguém sobre aquele dinheiro, afinal de contas devia não somente alguns empréstimos bancários, como também a amigos e vizinhos. Não era caloteiro, não mesmo, mas precisava de uma segurança para sanar algum possível imprevisto que pudesse surgir. Seu rosto ficou vermelho de raiva no momento em que bradou indignado:

– VOCÊS, POR ACASO, ANDAM ME ESPIONANDO!?!?!?

– Claro, Sr. Nogueira, de que outra forma poderíamos saber se o senhor era realmente merecedor desse benefício que estamos lhe oferecendo agora? – assumiu Anderson sem constrangimento. – Mas o senhor não se preocupe, pois nossa política é de sigilo total, tanto para vocês, quanto para nós. O senhor não relata nossa existência a ninguém, e nós não espalhamos nenhum daqueles pequenos segredos sórdidos que todos nós escondemos dentro de nossos armários, como, por exemplo, cinco mil reais embaixo de um colchão.

– O que vocês querem comigo exatamente? – questionou o homem já um pouco mais calmo.

– Ajudá-lo, nada mais. E, antes que o senhor pergunte, eu digo o porquê. Por que o senhor é um homem bom, essencialmente bom. Apesar de todas as dificuldades e humilhações que passou nessa vida, sempre manteve seu caráter irretocável, uma honestidade inquestionável e uma vontade de viver invejável, mesmo que com sofrimento e dor. E essas são qualidades que nossa empresa admira e busca em um possível candidato.

– Nunca fiz nada além do que precisei para sobreviver. – retrucou Nogueira sentindo-se lisonjeado como nunca antes na vida.

– Sim, mas muitos em seu lugar teriam buscado “facilidades”, se é que você me entende. – Nogueira acenou positivamente com a cabeça, invadido por um inédito orgulho próprio, então viu Anderson prosseguir seu raciocínio – e é exatamente essa força interna, essa resiliência, que o fez merecedor daquilo que estamos prestes a lhe mostrar, se for de sua vontade, claro.

– Não vejo mal em prosseguir com essa história por mais algum tempo. – respondeu um pouco ressabiado.

– Ótimo! Então, peço para que assine esse livro de Presença aqui, e que, depois, siga-me até a sala ao lado.

E foi o que Nogueira fez. A sala era mais ou menos do mesmo tamanho que anterior, mas no centro havia algo que, para ele, assemelhava-se a uma cadeira de dentista. Achou aquilo intrigante, mas caminhou mais alguns passos até que Anderson voltou a falar.

– Essa é a sala da Infoterapia. É aqui que sua vida começará a mudar definitivamente. Assim que deitar aqui, começaremos o seu “tratamento”. Não se preocupe, pois essa terapia é totalmente indolor. Nós da SEU SONHO, NOSSO SONHO descobrimos uma maneira inédita de injetar informações e habilidades nas partes dormentes do cérebro, ou seja, deixamos nossos selecionados mais inteligentes; velozes; eficazes; competitivos. Durante as próximas duas horas e meia, o senhor receberá uma quantidade de informações que levaria décadas de estudo intenso e aplicado para aprender. Matemática; Física; Cotidiano; História; Biologia; Medicina; Entretenimento; Filosofia; Política; Artes Marciais; Ocultismo, e todo outro tipo de informação que possa imaginar, serão inseridos dentro desses locais inexplorados do seu cérebro, fazendo do senhor uma verdadeira máquina. Além disso, descobrimos que, ao despertar essa parte dormente do cérebro, o indivíduo adquire alguns poderes psíquicos interessantes, que variam de acordo com a pessoa, como telecinese; hipnose; telepatia. Mas nunca conseguimos antecipar se ou qual será despertado. Alguma pergunta?

– Na verdade, não entendi direito nada do que você falou até agora, então só consigo pensar em uma pergunta para fazer. Algo que me chamou a atenção e está me remoendo desde que cheguei aqui. Quem são aquelas pessoas nos quadros pendurados na recepção?

– São apenas algumas das pessoas selecionadas por nós, nada mais. Mas e o senhor, está interessado no tratamento?

O homem nem respondeu a pergunta, já deitando imediatamente na “cadeira de dentista” à sua frente. Anderson riu daquela objetividade e prendeu um eletrodo em cada lado da testa, ligando-o a uma enorme máquina que, ao acender, revelou-se no fundo da sala, que, agora, mostrava-se maior do que parecia anteriormente. Anderson ficou em pé, bem à frente de Nogueira, com os dedos indicadores apoiados nos pequenos círculos presos aos lados da testa. Foi quando, subitamente, sentiu um impacto. De fato, não sentia dor, mas havia um certo desconforto, como se formigas marchassem dentro de sua cabeça. Eram as informações chegando. Os olhos retorciam convulsivamente, e a boca mordia o cilindro de borracha que havia sido colocado entre os dentes pouco antes do processo ser iniciado. E durante os próximos 150 minutos, o “escolhido” debateu-se na cadeira de dentista inadvertidamente.

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Nogueira acordou com a baba escorrendo pelo canto do rosto e um gosto ruim na boca. Quando abriu os olhos percebeu uma nota de R$ 50,00 grudada em seu lábio inferior e uma poça que havia se formado em seu travesseiro. Olhou para os lados e reconheceu o local onde se encontrava. Era seu quarto. Estava em sua casa e, provavelmente, aquela nota que ficara presa em sua boca fazia parte daquele montante que escondia em segredo (nem tão segredo assim agora) embaixo do colchão. Não se lembrava de como havia chegado ali, aliás, a última coisa que recordava fora o momento em que Anderson colocara os dedos indicadores nos eletrodos presos a sua testa. Depois disso, só um enorme vazio, o que era ao menos intrigante, já que o objetivo daquela experiência era encher seu cérebro de informações novas e não privá-lo delas.

Alguns minutos depois, a barriga roncou e, após uma breve inspeção na geladeira de casa, resolveu que faria um pequeno lanche fora. A padaria ficava a poucos metros daonde morava, e ainda por cima tinha preços bem razoáveis, o que fez dela sua primeira opção. Assim que entrou no estabelecimento avistou a bela Maria, uma mulher de 35 anos que aparentava, no máximo, 25. As coxas grossas e suculentas chamavam atenção até dos praticantes do celibato, como o Padre João, e delineavam músculos tonificados que expulsavam qualquer tipo de celulite. O abdômen era perfeito, marcado por pequenos gomos de músculo e invadido por finos pêlos louros e bronzeados, que pareciam fios de ovos brilhantes. Mas eram os olhos azuis que mexiam, de fato, com Nogueira. Tinha paixão por eles, e os dela eram azuis como o mar nos lugares inóspitos ainda não destruídos pela presença do gafanhoto chamado homo sapiens. Adorava encontrá-la pelas ruas do bairro, pois só assim tinha a oportunidade de admirá-la, escondido em algum canto qualquer. Só que dessa vez, podia ver também algo diferente, como se fosse um tipo de raio-x da sua alma, que lhe mostrava o que Maria sentia naquele exato momento. Podia perceber os menores detalhes, como, por exemplo, a hora em que surgiu um pequeno ponto vermelho em sua batata da perna, segundos antes da moça levar a mão até o local e coçá-lo. Era como se tivesse percebido, antes mesmo do que ela, que aquela coceira se manifestaria. Agora, prestando mais atenção, podia observar seu estado de espírito, suas vontades, até seus desejos. Não sabia como explicar isso, apenas pressentia. Aproximou-se da mulher com inédita confiança, e ofereceu-lhe uma bomba de chocolate e um capuccino, o preferido dela, ela diria mais tarde, sem ter idéia de que essa informação, agora, não era nenhuma novidade para ele. Na sua cabeça borbulhavam todos os tipos de assunto, desde política à alta costura. Não havia conversa que ela iniciasse, sobre a qual ele não tivesse absolutamente todas as informações disponíveis a qualquer ser humano. Ele era uma máquina de conhecimento.

A bomba e o capuccino duraram apenas alguns minutos, mas a conversa esticou-se por horas. Maria achava estranho sua atitude, nunca dera muita confiança para estranhos que a abordavam na rua (senão passaria o dia se dedicando a isso, pensava ela, sem falsa modéstia), mas aquele homem pouco atraente, diga-se de passagem, parecia conhecê-la como ninguém em toda sua vida. E aquilo mexia com ela, trazia uma queimação dentro da barriga que em breve se transformaria em um fogo incontrolável, um desejo irreconhecível, que parecia cegá-la impiedosamente, e que a fez convidar-se para ir até a casa dele. Nogueira já começava a entender o que acontecia. A tal de “infoterapia” de alguma forma lhe dava ferramentas que permitiam, através da utilização dessa parte dormente do cérebro, ver o que outros não viam, perceber o que os outros não percebiam e sentir o que os outro não podiam sentir. Sua psique o permitia ler não apenas mentes, mas sentimentos também. Uma sensibilidade extrassensorial que fazia dele alguém muito, mas muito poderoso. Tão poderoso que estava, agora, na cama com aquela deliciosa mulher.

Com o passar dos dias, Nogueira foi percebendo que exercia uma influência poderosa não só sobre aquela cobiçada mulher do bairro, mas praticamente sobre todos com os quais tinha contato. Pelo menos, até o momento, não havia encontrado uma só alma que resistisse a sua conversa, realizando suas vontades e seus desejos. Era tudo muito inusitado. Bastava um mínimo de concentração em um alvo, e Nogueira conseguia entender a pessoa da maneira mais íntima e sublime, surpreendendo-a com comentários e assuntos de seu total interesse, que a deixavam completamente vulnerável as suas vontades e desejos. A Infoterapia era, de fato, muito poderosa, e fizera com que ele praticamente se transformasse em um leitor de pessoas.

Bom, como todos podem imaginar, o poder é algo inebriante e que toma conta de qualquer um, portanto, não levou muito tempo para que Nogueira se dedicasse, quase que exclusivamente, a conquistas baratas e desnecessárias, causando mal-estar e problemas nas vidas de diversos casais que tiveram seu relacionamento abalado ou extinguido em função dele. Não havia como as mulheres resistirem ao seu “charme” por muito tempo. Cedo ou tarde, elas acabavam em sua cama, compelidas por um desejo que elas não conseguiam entender, muito menos seus maridos, bom, pelo menos a maior parte deles. nunca havia tido uma agitada vida sexual, mas, os últimos dias, compensavam os anos de abstinência forçada.

Partiu também atrás do dinheiro fácil, obtendo empréstimos com vizinhos, amigos e até desconhecidos. Depois, as pessoas não entendiam porque emprestavam suas economias para alguém que mal conheciam, mas bastava Nogueira pedir, para que qualquer um cedesse. Torrava tudo em noitadas e mordomias, afinal, quitar o débito não seria problema, apenas “convenceria” o credor a extender o prazo ou, quem sabe, até cancelar a dívida. Largou o trabalho como ambulante e até desistiu de ir buscar o dinheiro de sua aposentadoria, não tinha conta em banco e a fila era sempre muito grande. Transformou-se visivelmente. As pessoas mais próximas, apesar de não resistir a um pedido seu, não apreciavam mais sua companhia, e isso causava tremenda confusão em suas cabeças. “Por que satisfaziam suas vontades quando não gostavam desse novo ELE?” era o que se perguntavam todos, completamente sem resposta.

E assim passaram-se dias, semanas e meses, até que certa tarde, enquanto degustava um sanduíche “gentilmente oferecido” pelo dono da padaria local, um conhecido pão-duro de mão cheia, Nogueira teve o lanche interrompido por uma mensagem recebida em seu novíssimo celular:

A SEU SONHO, NOSSO SONHO PEDE SEU COMPARECIMENTO EM NOSSA SEDE COM URGÊNCIA!

ANDERSON GIBRALTAR”

A mensagem em seu celular chamou a atenção do homem por duas razões: A primeira, foi o fato dele ter adquirido aquele celular no dia anterior, e não ter cedido ainda esse número à ninguém (muitos, apesar de realizar seus pedidos, não o procuravam mais com a mesma frequência), e a segunda, era a palavra “URGÊNCIA” contida no corpo da mensagem. O que poderia ser tão urgente? Será que aquela terapia tinha efeitos colaterais?, então lembrou-se que nunca havia pago nenhuma quantia pelo tratamento, talvez fosse isso, mas dependendo do valor, nem pagaria, afinal de contas, não tinha assinado contrato nenhum com ninguém. Decidiu que permanecer com a dúvida seria pior do que descobrir qual seria aquela “URGÊNCIA” e resolveu que compareceria naquele endereço no outro dia logo cedo.

E foi exatamente o que fez. No outro dia, bem cedinho, lá estava ele sentado na recepção da empresa em que estivera meses atrás pela primeira vez. A sala continuava a mesma, exceto pelos quadros com as fotos dos clientes que não mais se exibiam pendurados por toda parede. Dessa vez, teve que aguardar pouco mais de uma hora até ser chamado, o que o deixou irritado, não só por se considerar um homem, atualmente, poderoso e importante, mas, principalmente, pelo fato de haver tentado convencer a recepcionista a apressar sua entrada sem sucesso algum. Talvez fosse isso. Talvez tivesse sido chamado até ali para recarregar seu cérebro com uma nova sessão de Infoterapia e poder continuar satisfeito com a empresa pela qual fora selecionado. É, provavelmente era isso. Só uma recarga cerebral, nada mais.

Alguns minutos depois, viu a figura de Anderson aparecer por entre a porta da sala adjacente. O homem fitou-o por alguns segundos e depois pediu para que o seguisse até o outro ambiente. Ao entrar, Nogueira percebeu que todos os quadros que antes ficavam pendurados na recepção, agora estavam pendurados naquela sala. Na verdade, havia muito mais quadros aqui do que caberia na sala anterior. Eram milhares. Homens; Mulheres; Nem Tão Homens e Nem Tão Mulheres; Idosos; Adolescentes; Crianças até; todos misturados numa orgia de retratos de fazer inveja à carteira de clientes de várias empresas. Todos pendurados na sala. Aliás, aquela sala era uma novidade para ele, era gigante e circular e bem menos fresca que a anterior. Com certeza, caso ali houvesse entrada para ar-condicionado, este estaria com algum defeito. Reparou que Anderson o encarava com uma cara bem menos convidativa do que da última vez. As mãos apoiadas no queixo eram sustentadas pelos cotovelos firmes na mesa retangular, que continha apenas uma folha de papel em sua superfície, nada de computador, telefone, porta-retratos, pastas de clientes, apenas aquela folha de papel. Nogueira ficou um pouco desconfortável, mas permaneceu quieto até que Anderson começasse a falar:

– Sr. Nogueira, passaram-se seis meses desde sua sessão de Infoterapia e chegou a hora de discutirmos os valores devidos à nossa Companhia.

– Valores? Mas que valores? – respondeu o homem tentando disfarçar uma surpresa.

– Ora, Sr. Nogueira, os valores referentes aos serviços prestados ao senhor. Lembre-se que nossa carta deixava bem claro “REALIZAR SEUS SONHOS A CUSTO PRATICAMENTE ZERO” – enfatizou Anderson franzindo seriamente a testa – mas tenho certeza de que isso não lhe é, de fato, surpresa, tendo em vista que consta do seu contrato conosco. – completou dando dois tapinhas com a mão direita no papel que repousava na mesa entre os dois.

Nessa hora, Nogueira arregalou os olhos tentando entender sobre o que aquele homem se referia. Nunca havia assinado contrato nenhum com eles. Havia sido levado direto da recepção para sala (se sua memória não estivesse pregando alguma peça), de lá para uma pequena sala onde encontrara o homem à sua frente e, de lá, caminhou direto para o início da Infoterapia. Não, realmente não havia assinado nenhum contrato com eles. Aliás, a única coisa que lembrava ter assinado havia sido aquele tal Livro de Presença… a não ser que aquilo não fosse apenas um livro de presença, mas sim algo que o ligasse legalmente àquela estranha empresa. Só então viu o sorriso na boca de Anderson abrir feito guarda-chuva, podia sentí-lo lendo suas entranhas, assim como fazia diariamente com os outros. Sentiu-se invadido, usurpado com aquela atitude, e entendeu o porquê das pessoas não o procurarem mais. Era como uma mulher tomando banho, ao perceber os olhos de um voyeur fitando-a em um desejo repulsivo. Tinha acabado de juntar as peças do quebra-cabeça, e sentia que Anderson sabia disso. Havia sido enganado pelo homem parado na sua frente.

– Qual o preço? – perguntou resignado – Imagino que um poder assim não seja barato – completou.

– Não, realmente não é, mas para alguém que o recebeu sem gastar absolutamente nada, o custo será praticamente zero, como prometido. Queremos 10% de tudo que o senhor conquistou em razão da Infoterapia.

– Mas… mas eu não consegui emprego nenhum, estou sem trabalhar há meses, não recebo valor algum… nem o da minha aposentadoria recebo mais. Vivi de favores todos esses meses. Percebi que dinheiro é um acessório desnecessário quando se tem o poder de conseguir tudo o que se quer dos outros. Eu não tenho dinheiro algum.

– Só os cinco mil embaixo do colchão – corrigiu Anderson a tempo-, mas isso é mixaria perto do que o senhor nos deve. Monitoramos o senhor durante todos esses meses, entre almoços de graça, hospedagem, transporte, empréstimos pessoais, o senhor nos deve aproximadamente essa quantia – afirmou o homem enquanto mostrava ao sujeito um guardanapo com o números escrito à caneta. O valor era altíssimo e levaria tempo para ser levantado por ele, mesmo com a ajuda dos poderes atuais. Então Anderson continuou – Isso sem contar, claro, as mulheres. Bem, considerando que o senhor não comia ninguém a um bom tempo, e levando em conta todas as mulheres que o senhor usou e abusou nesses últimos meses, tomando por base o preço médio de uma acompanhante intermediária, adicionando um bônus pelas orgias experimentadas, posso calcular esse como sendo o valor final do seu débito. – concluiu mostrando novamente o guardanapo, agora ainda mais rabiscado por uma estranha conta rasurada à caneta. Nogueira quase infartou. Sentiu caminhões basculantes trafegando por suas pontes de safena, comprimindo o coração numa dor alarmante. Não tinha como pagar aquilo. Na verdade, poucos teriam condições de quitar uma quantia tão exorbitante. Havia sido enganado, e, agora, não via saída alguma para seu dilema.

– Pela sua reação, vejo que não está pronto para honrar seus compromissos para conosco. Entretanto, há outra possibilidade, para sua sorte.

– Qual possibilidade é essa? – Nogueira inquiriu entusiasmado.

– Consta no seu contrato. – respondeu o diretor, empurrando o papel na mesa em direção ao seu cliente. – Cláusula IX.

O sujeito, esperançoso, nem leu as cláusulas anteriores e foi direto no texto da citada Cláusula IX que regrava: “Em caso de inadimplência da quantia acordada acima, fica o CONTRATANTE sujeito a quaisquer determinações impostas pela CONTRATADA, sejam elas quais forem, de qualquer razão, ordem ou circunstância, sem direito a nenhuma contestação e/ou questionamento daquilo que for requerido, estando obrigado ao cumprimento total e intransferível da obrigação que lhe for imposta”, ou seja, ele estava nas mãos daquele vagabundo que agora o observava com uma altivez irritante.

– Esses termos não seriam validados em nenhum tribunal. Nenhum juiz acolheria essas condições leoninas. Isso é um ultraje!

– Calma, Sr. Nogueira. O senhor nem sabe o que nós queremos, ainda.

– Já imagino que boa coisa não seja. Fale logo, então, seu desgraçado! O que é que eu tenho de tão importante que você possa querer em troca da dívida?

– Nada demais, apenas sua alma.

– Como assim minha alma? – indagou o sujeito sem entender direito o significado daquilo.

– Ora, Sr. Nogueira, sua alma, aquilo que o mantém vivo, sua essência, sua continuidade, enfim, sua alma – completou sem muita paciência.

– E quem é você para querer minha alma? Lúcifer? Satanás? O Coisa-ruim?

– Não, mas estou pleiteando o cargo, talvez daqui uns 500, 600 anos, se conseguir encaminhar bastante almas como a sua lá para baixo.

– Eu.. não… est…tou… te… enten…dendo – falou o homem sentindo uma dificuldade de respirar e uma fraqueza nas pernas que o deixou genuflexo.

– Tsc… Tsc… Tsc… Chega a dar até dó de pessoas iguais a você, mas como gostei do senhor, Sr. Nogueira, vou deixá-lo um pouco mais a par da dura realidade. No inferno, caro amigo, também há competição, também há metas a cumprir. Somos milhares de candidatos pleiteando o Cargo Supremo, dado àquele que vocês gostam de chamar de lúcifer, diabo, satanás, etc. Mas o mal tem prazo de validade também, assim como um jogador de futebol ou um escritor ou qualquer outro profissional, a maldade atinge seu ápice e depois de um tempo rola ladeira abaixo. Ninguém consegue ser mal por toda existência. Nosso atual Mestre Supremo, ou Lúcifer como vocês gostam de dizer, já atingiu seu auge há um bom tempo, e seu espaço está sendo tomado por milhares de formiguinhas como eu, mas só há lugar para um Mestre Supremo, e como a competição é muito acirrada (vocês não fazem idéia das coisas das quais alguns são capazes lá embaixo) eu pensei “O que fazer para conseguir a atenção DAQUELE que nomeará o sucessor?”, e cheguei a conclusão que havia uma única coisa que poderia ser feita de diferente: Trazer para o inferno almas boas. “Mas Lêniter (esse é meu verdadeiro nome) como fazer para levar almas boas para o inferno?”, fácil, respondo eu, basta fazê-las assinar um contrato vendendo sua alma, e depois fazê-las pecar, sem remorso. Simples.

Nesse momento, Nogueira sentia o peito pulsando em um velocidade frenética, o coração acelerado deixava a vista embaçada, e agora Nogueira caía deitado de lado no chão da sala, ainda lutando em busca de ar, como um asmático diante de um ataque de asma mais sério, sem a presença de sua bombinha. Os olhos de Lêniter eram impiedosos e sua boca, mais ainda:

– É o seu caso, meu caro. Um homem que a vida inteira foi honesto e respeitador, que trabalhou nos mais sórdidos subempregos existentes, que sempre apregoou a justiça, mesmo sendo injustiçado pela sociedade e seus governantes, que sofreu problemas de saúde e teve que se endividar para quitar parte do débito que deveria ter sido bancado pelo Estado, a quem prestou conta por toda a vida. Um homem que, apesar de todas as mazelas vividas, sempre preservou seu caráter e sua índole, agora transformado em um porco egocêntrico no momento em que sentiu o gostinho do poder. Você, meu caro Nogueira, poderia muito bem ter usado sua nova condição para ajudar pessoas mais necessitadas, como sempre fez durante sua vida, mas ao invés disso, destruiu casamentos e enganou amigos, vizinhos e parentes. Afastou de si todos aqueles que se orgulhavam de tê-lo conhecido, transformando-se numa pessoa mesquinha, fraca, má. E onde você acha que acaba esse tipo de pessoa? Você poderia ter sido bom, e, caso tivesse sido, hoje nada seria cobrado de você, Cláusula X do seu contrato, mas você infringiu as regras da sociedade em benefício próprio, e agora o preço que lhe imponho é esse: Sua Alma!

Os olhos do homem combalido no chão viravam para cima deixando o globo ocular com uma cor totalmente branca. Da boca saía uma baba amarela fétida, que se assemelhava ao pús produzido pelo corpo humano. A acidez da baba corroía seus lábios e algumas partes do braço em que havia respingado. Era o fim se aproximando. Rapidamente. Lêniter, impassível, continuou:

– Não há pessoas boas no mundo, o que há são circunstâncias que favorecem o aparecimento de bondade nos indivíduos. Seja por medo das consequências; por temer a punição divina; por tranquilidade financeira; ou por conformidade com a falta de perspectiva de vida; algumas pessoas se tornam superficialmente boas, mas basta um pequeno empurrãozinho para que essa máscara caia e o sujeito mostre sua verdadeira essência. Só é possível conhecer alguém de verdade, quando esse alguém tem poder em suas mãos, como seu caso, por exemplo. A diferença entre o remédio e o veneno é a dose aplicada, no seu caso, eu apenas caprichei na quantidade.

O homem mal conseguia manter-se lúcido com a falta de ar nos pulmões. Tentava resistir o máximo possível, mas seu destino já estava traçado. Olhou para os quadros afixados na parede e viu o cimento derreter com o fogo que se formava ao seu redor. A pintura da parede derretia e escorria em direção ao chão, como o mel produzido em uma colméia. O calor se tornava cada vez mais insuportável, e as molduras dos quadros desapareciam em poucos segundos. Só então, o rapaz sofreu o golpe de misericórdia. Todas aquelas pessoas nos quadros, na verdade estavam lá, de corpo presente, acorrentadas, pregadas e algemadas em longas cruzes de madeira e fogo ardente, queimando ali por toda eternidade. Formavam um círculo de sofrimento e pavor, apesar de já parecerem indiferentes a dor. E no meio de todas aquelas cruzes incandescentes, havia uma vazia, imponente, ornamentada apenas por uma placa que dizia: Seja Bem-vindo, Sr. Nogueira. E foi nesse momento, ao entender que passaria a eternidade ardendo naquelas chamas viscerais, que Fausto deu seu último e condenado suspiro.

Duas Vidas

Agradeço de antemão ao  grande Aimone pela belíssima sugestão para esse conto.

Patrício era mais um imigrante brasileiro a tentar ganhar a vida fora do país. Escolheu como local de refúgio a paradisíaca Califórnia, mais especificamente, o Boulevard de Santa Mônica. A cidade era uma delícia, beirava o gelado Oceano Pacífico, e era sempre invadida por inúmeros turistas que vinham atraídos pelas belezas naturais, e suas avenidas repletas de bares e restaurantes, e em um desses, mais especificamente o “Bon Vouyage”, trabalhava nosso conterrâneo brasileiro.

A vida lá era dura, a praia pouco frequentara desde que chegara há 6 meses, pois passava a maior parte do tempo trabalhando como garçon no Bon Vouyage, sempre buscando formas e maneiras de trabalhar o máximo de horas possível por semana – afinal lá o salário era de U$ 10,50 por hora – e quanto mais trabalhasse menos tempo tinha para gastar o seu suado dinheirinho. Em um bom mês, com muitas horas trabalhadas, conseguia faturar quase U$ 3.000,00, perto de R$ 7.000,00, quase dez vezes o que ganharia fazendo o mesmo serviço aqui no Brasil, mas bem menos do que receberia caso seu sonho de ser jogador de futebol profissional tivesse se realizado.

O sonho ainda era bem vivo em sua cabeça, afinal fazia apenas alguns anos que abrira mão dele, após um pênalti perdido na final da Copa São Paulo de Juniores em 2002. O erro causou a perda do título, além de estampá-lo nas capas de jornais e programas esportivos, já que o erro havia sido consequência de um humilhante escorregão que o fizera chutar a bola com a força e habilidade de uma criança de 3 anos de idade. Fora nesse momento, que perdera a esperança de se tornar um jogador de futebol bem sucedido. Sem contar que, logo depois, um amigo que havia embarcado na aventura de morar e trabalhar fora do país, voltara à sua cidade em ótima situação financeira – claro que se comparado aos amigos de infância – e apoiou Patrício na decisão de abandonar o futebol e perseguir aquela realidade mais palpável.

Os pensamentos e lembranças do garçon foram interrompidos por um súbito ronco de motor que assemelhava-se aos rujidos de um leão faminto. Na porta do restaurante, um homem descia de sua moto envenenada, vestindo uma belíssima jaqueta de couro e óculos escuros de grife famosa. Não chegava a ser muito bonito, mas Patrício achava que seu estilo devia chamar a atenção de muitas mulheres. O homem entrou no restaurante sem causar alarde, e apesar da chegada triunfal, ninguém além dele pareceu curioso ou interessado em observá-lo caminhar até uma das mesas vazias. Se estivesse no Brasil acharia a postura daquelas pessoas muito estranha, mas nos EUA todos pareciam mesmo mais reservados, cuidando de suas próprias vidas.

O homem aproximou-se de Patrício, sentando na mesa bem à sua frente:

– Você que atende essa mesa aqui?

– Sim Senhor

– Da onde você é? – perguntou o homem percebendo o sotaque carregado do garçon.

– Brasil, senhor.

– Não acredito! – exclamou o homem mudando do inglês para o português – Que maravilha é ver um conterrâneo por essas bandas.

O homem já falava um português mais arranhado, infiltrando palavras em inglês no meio de sentenças em português, coisa comum para aqueles que ousam morar fora do país. Antes que Patrício pudesse continuar sua análise, o homem prosseguiu:

– Cara, Qual seu nome? – ouviu a resposta prontamente – Então, Patrício, o que te traz aqui para Califórnia? Conte-me tua história.

Fazia tempo que o garçon não encontrava alguém tão simpático como o cliente à sua frente. Sem pensar duas vezes contou como havia seguido os passos de um amigo, e que pensava em passar alguns anos nos EUA antes de voltar para o Brasil, e como sentia falta das pessoas, da família e daquela comida caseira…

– Nem me fale, Patrício! – interrompeu o cliente – A comida  do Brasil é imbatível mesmo. Um arroz com feijão; uma farofinha; um bife acebolado com batata frita… hummm… que delícia! Mas, por outro lado, aqui eu tenho muito mais facilidade em manter meu peso, afinal não como junk food (macdonald´s, burguer king) e poucos restaurantes brasileiros conseguem trazer o mesmo tempero para os pratos servidos aqui, então acabo comendo bastante salada e frango grelhado, o que pra mim é ótimo por causa da profissão.

– E o que o senhor faz? – perguntou Patrício ainda acanhado e em tom respeitoso.

– Ô Patrício, que isso, rapaz? Senhor tá no céu, pô! Cara, eu faço a única coisa que um brasileiro pode fazer pra ganhar dinheiro fora do Brasil se não for rico de berço: Sou jogador de futebol.

Os olhos de Patrício se arregalaram. Primeiro surpreso, pois a moto e roupa que ele usava indicava que era um jogador bem sucedido, e, ainda assim, ele nunca ouvira falar desse jogador antes. Se bem que agora começava a acompanhar a MLS (Major League Soccer) – o campeonato de futebol nacional – e não conhecia nenhuma das equipes da competição. Paulo – ou Paul The Tractor, como era conhecido nos EUA – integrava a equipe do sul da califórnia chamada San Diego Rockets há pelo menos 6 anos. A interessante conversa estendeu-se por vários minutos, adentrando os mais minuciosos detalhes, com Paulo, ou melhor, Paul The Tractor, inclusive, revelando os U$ 2.000.000,00 anuais que recebia entre salários e contratos esportivos. Essa intimidade quase que automática, apesar de estranha, era comum entre pessoas de um mesmo país que se conheciam em outro lugar do mundo. Não demoraria muito para Paul começar a falar até mesmo de sua vida sexual. Patrício ficou tão envolvido pela conversa que nem percebeu o momento em que se sentou na mesa de Paulo, enquanto outros clientes aguardavam seus pedidos.

O homem da jaqueta de couro continuou contando sua história de vida – que se assemelhava em muito à história dele próprio – e Patrício passou a observar que aquele rapaz tinha feições muito parecidas com as suas. O nariz era mais afinado, o cabelo mais liso, um pouco mais musculoso, a pele mais bem tratada, isso sem dúvida, mas debaixo de tudo aquilo, era como se ele parecesse ser seu irmão mais velho. Até que o homem começou a relatar as dificuldades no início de carreira e como havia passado um momento humilhante alguns anos atrás ao escorregar em um pênalti decisivo, e coisas do tipo. Patrício olhou espantado para o homem, o rosto pálido como a neve deixando claro que algo o atordoara por completo. Aquele estranho homem na sua frente vivia o seu sonho, possuía sua moto preferida, ganhava dinheiro como jogador profissional de futebol e ainda tinha vivido um passado exatamente igual ao seu, além de ter o mesmo nome, já que fora batizado Paulo Patrício Nogueira. Então, o jogador de futebol, percebendo a desconfiança no rosto do outro, abriu um leve sorriso e disse:

– Não fique confuso, meu caro amigo. Eu nada mais sou do que seu futuro, caso você não tivesse desistido tão fácil do seu sonho. Você abandonou tudo ao primeiro obstáculo, e o mais engraçado, é que isso criou muito mais obstáculos em sua vida, e todos eles muito mais difíceis de ser transpostos. – O garçon continuava branco como um fantasma, totalmente paralisado – Patrício, na vida, nós somos aquilo que escolhemos, nada mais, nada menos.

Subitamente, uma mão vinda de trás encostou em seu ombro, fazendo com que se assustasse causando-lhe soluços. Ao olhar para trás, viu Mr. Smith, o dono do restaurante, e mais uma dúzia de clientes observando-o curiosos. “Você está bem?” perguntou o senhor de idade, sem que Patrício entendesse o porque. Pensou em desculpar-se por estar proseando com um cliente em horário de serviço, mas antes que o fizesse percebeu que estava sentado sozinho na mesa do restaurante. Não havia ninguém por lá. Olhou para a frente do estabelecimento e não conseguiu ver a imponente moto antes estacionada à frente. Mas como isso era possível? Seria inviável que o rapaz tivesse saído sem que notasse o ronco daquele motor. Estava ficando louco, só podia ser isso. Conversando sozinho, sentado em uma mesa, durante o expediente… só podia ser sinal de que a loucura começava  a vencer a batalha contra a sanidade. Queria ser um jogador de futebol, e no final, nem um bom garçon conseguiria ser.

Seguiu os conselhos de seu patrão e recolheu suas coisas para ir embora mais cedo. Ao sair, dirigiu-se até o local onde a moto supostamente ficara estacionada. No chão, uma nítida marca de pneu o deixou intrigado, e ao lado dela, um pequeno flyer preto com letras garrafais em vermelho:

SAN DIEGO ROCKETS TRY-OUTS / SECOND AND LAST CHANCE / THIS WEEKEND FROM 9 TO 5.

(PENEIRA NO SAN DIEGO ROCKETS/ SEGUNDA E ÚLTIMA CHANCE/ ESSE FINAL DE SEMANA DAS 9 ÀS 17)

A esperança voltou em forma de um leve sorriso e fez os olhos marejarem em um intenso brilho. Então, Patrício saiu correndo para casa. Correu muito, como aquele que foge do fim do mundo, ou, como alguém que persegue um novo futuro.

E Você? O Que Faria?

O sol a pino transformava o congestionamento em algo muito mais insuportável do que normalmente já seria.  Mesmo com a bela vista da praia ao lado, o calor, somado ao defeito no ar condicionado, fazia com que pai e filho quisessem atingir seu destino o mais rápido possível. A camiseta já servia de toalha de rosto, enxugando o suor incessante produzido pelo corpo. Os vidros abertos não traziam muito conforto, mas evitavam que o carro se transformasse em um forno ambulante.

A temperatura passava dos 35 graus e o rádio, única distração da dupla, já começava a causar algumas divergências, já que o pai insistia em ouvir um samba, enquanto o garoto queria sintonizar seu i-pod para ouvir alguns clássicos do mundo metal. O pai, claro, venceu a discussão e o rapaz, já emburrado, tacou o objeto em cima do painel do carro. Foram necessários poucos minutos para que o aparelho eletrônico servisse de isca e fisgasse logo um assaltante. Um rapaz, aparentemente menor de idade, vestindo uma camiseta rasgada do Real Madrid, abordou o carro pela janela do motorista, apontando um revólver enferrujado para a cabeça do pai. Queria dinheiro, mas nenhum deles tinha mais do que alguns trocados. Então, ordenou ao moleque que passasse o aparelho que repousava em cima do painel. O garoto o fez, só que o pai, sabendo da paixão do filho pelo objeto, intercedeu tentando roubar a arma do assaltante. O tiro entrou pela têmpora esquerda e estraçalhou o cérebro do homem que praticamente morreu na hora. O assaltante fugiu, e o garoto desesperado, saiu do carro, pegou-o no colo e disparou pela avenida com o pai desfalecido nos braços. A cena foi filmada por vários cinegrafistas amadores que, com seus celulares, conseguiram captar o desespero do rapaz aos prantos pedindo socorro.

O caso virou assunto principal nos jornais e telejornais do país, com os canais de televisão explorando as imagens chocantes daquela cena que emocionou o Brasil. O filho virou alvo de entrevistadores e programas de TV que queriam saber em primeira, segunda ou terceira mão, os detalhes mais sórdidos daquele dia terrível. E o garoto foi. Em princípio, para pedir justiça e paz, até que um dia, num desses programas vespertinos apelativos, surgiu o assunto da sua banda de rock chamada Tenores do Rock. O convite para a apresentação do grupo no mesmo programa surgiu imediatamente, e lá foram Oswaldo e seus amigos mostrar seu repertório. Ocorre que, curiosamente, os garotos eram muito bons, daqueles que só não haviam feito sucesso ainda por falta de oportunidade, e após a apresentação naquele canal de televisão bombaram convites para shows e propostas trazidas por empresários que gostariam de gerenciar suas carreiras.

A coisa virou uma bola de neve incontrolável, e em poucos anos os Tenores do Rock foram fabricando sucesso após sucesso, vendendo 3 milhões de cópias em menos de 3 anos. Oswaldo virou sensação mundial e começou a ser chamado para tocar com seu grupo em eventos internacionais, ao lado de bandas como Oasis, Coldplay, Rush e U2. Seu sucesso repentino foi considerado superior ao obtido pela banda Guns And Roses na década de 90, mas seu talento era aclamado até pelos críticos. Poucas eram as vozes que ousavam se levantar  para criticar Oswaldo e sua banda. E assim foi, até o momento auge de sua carreira com a conquista dos Grammys de Melhor Álbum do ano, Canção do ano, Grupo de Rock, Canção de Rock, Álbum de Rock e Melhor Artista Novo. E foi, ao receber esse último prêmio, que Oswaldo resolveu discursar em homenagem ao pai. E quando disse a frase “daria tudo para tê-lo aqui comigo”, sentiu um vento gelado soprar em sua nuca e percebeu todos a sua volta paralisados como se houvessem sido congelados por um tempestade de neve. Tudo imóvel, completamente inerte. Até o tempo. Só então percebeu uma figura alta, raquitica, com riso fácil e olhar sombrio, encarando-o.  Não sabia quem era, mas sentiu sua espinha congelar ao observá-la ali, parada, à espreita, como uma ave de rapina. Finalmente, o silêncio foi quebrado por uma simples frase dita pela figura misteriosa “Seu desejo é uma ordem” e, então, um bater de palmas fez com que o tempo ficasse invertido, como carro em marcha-ré.

Oswaldo viu o tempo voltar e toda sua trajetória de sucesso sendo apagada por uma enorme escuridão que envolvia seu futuro que agora virava passado. Era como um carro dando ré e vendo a estrada à sua frente sendo apagada por uma enorme borracha negra, deixando nada além de um vasto e tenebroso breu. Shows, entrevistas, mulheres, tudo se apagando como se nunca houvesse acontecido, exceto pelas memórias gravadas em seu cérebro. Três anos – os melhores de sua vida, aliás – sendo evaporados como água no deserto. Sempre houvera sonhado em fazer sucesso com a música, e agora que atingira seu objetivo, via tudo escorrendo por entre seus dedos, sentia fugir da boca o gostinho do sucesso.

Até que, depois de tudo de bom, viu sua imagem carregando o pai pela avenida beira-mar. Reviveu de trás para frente, todos aqueles momentos difíceis de ser esquecidos. Ele deixando o pai semi-morto no banco e andando de costas até o seu lado do carro. A visão do assassino voltando até o carro com seu i-pod na mão, e tornando a apontar a arma na cabeça do pai. A bala saindo do crânio de Wallace, consertando o estrago que havia feito até entrar novamente no cano do revólver enferrujado. As ameaças preferidas pelo criminoso, que faladas de trás para frente seriam intraduzíveis, mas que haviam permanecido gravadas na memória de Oswaldo por todos aqueles anos. Tudo sendo rebobinado como fita VHS até o ponto crucial em que o garoto entrega seu aparelho ao assaltante. Então, tudo para (com a reforma gramatical esse “para” não tem mais acento) novamente e, como num apertar de “PLAY”, passa acontecer em tempo real novamente. Dessa vez, porém, Oswaldo, ciente da reação do pai, consegue impedí-lo de tentar recuperar seu aparelho, e o assaltante vai embora sem saber o quão perto ficou de se tornar um assassino.

O garoto, agora, chorava emocionado ao abraçar o pai que não via há três longos (apesar de bons) anos. Wallace, sem saber de tudo que o filho sabia, pedia calma ao garoto que apenas lhe parecia assustado com o assalto. A “fita”, então, passou do “PLAY” para o “FAST FORWARD” e o garoto pode ver sua vida com a presença do pai. Observou como grudara no pai naqueles dias que sucederam o assalto e como sua presença o fazia feliz. Então, tudo voltou ao normal e só daí percebeu que sua banda não havia explodido. O Oswaldo em “FAST FORWARD” não conseguira as mesmas oportunidades conseguidas pelo primeiro Oswaldo, pois como o pai não levara um tiro durante o assalto, a cena do garoto correndo com o pai no colo jamais acontecera. Dessa forma, não houve convites para programas e nem empresários interessados. O tempo continuou passando em “FAST FORWARD” e um ano pareceu pouco mais que um minuto. Os ensaios durante a madrugada somados à falta de expectativa e oportunidade foram minando os componentes da banda, até que, então, veio o golpe fatal: O pai de Oswaldo sofreu um derrame enquanto trabalhava em sua oficina. E pode visualizar as consequências daquela fatalidade. O pai não podia mais trabalhar por causa da sequela que impedia os movimentos completos dos membros esquerdos, com isso, sobrou para ele a responsabilidade de cuidar da oficina, que era o sustento dos dois, e, cada vez mais, a banda foi sendo deixada para trás. Passou a seguir os passos do pai, vivendo sua vida suburbana e cuidando da oficina – além do pai enfermo, claro! O Oswaldo do presente observava inerte aquele futuro que lhe fora reservado caso o pai tivesse sobrevivido àquele assalto na praia. Viu, então, alguns anos mais tarde, quando as lembranças da banda Tenores do Rock não passavam de vento na memória do Oswaldo “FAST FORWARD”, o pai falecendo vítima de um segundo e fatal derrame.

A partir daí, o tempo parou novamente, e aquela possibilidade de futuro começou a ser também rebobinada. Tudo foi se apagando assim como havia acontecido com aquela primeira experiência, com a escuridão se apossando de tudo. Até que, novamente, se viu dentro do carro diante do assaltante e do pai petrificados, assim como todo resto ao seu redor. Foi quando a estranha criatura reapareceu na frente do carro. Ali, parada, ela fuzilava o rapaz com os olhos esperando que ele entendesse o grande dilema que lhe fora imposto. Sucesso ou Pai. Não teria os dois. Essa era a decisão. Uma vida de sucesso, fama e dinheiro ou a sobrevivência do pai e todas as consequências que ela traria para sua vida. A criatura, então, abriu os braços e Oswaldo sabia que no bater das palmas teria que decidir se impediria ou não o pai de reagir. Cruel, muito cruel, ele pensou com os olhos fechados. Foi quando ouviu a palma estalar, “ressuscitando” o mundo.

Acredito que a decisão de Oswaldo seja muito pessoal para ser contada aqui, mas e você? O que faria?

Sala de Espera

Foram longos os minutos enquanto esperava para ser chamado à sala de cirurgia. Acompanhar o nascimento, apesar de parecer lógico, não foi uma decisão fácil. E muito mais difícil seria, caso soubesse da existência daquela maldita Sala de Espera, que nada mais é que um local onde o pai aguarda ser chamado para acompanhar o parto, mas para aquele que lá permanece, assemelha-se mais a um portal tridimensional onde tempo é desproporcional e segundos e séculos têm a mesma duração.

E foi lá, naquela sala de espera, que vi o sofá se transformar em uma máquina do tempo, que me trouxe lembranças do passado e me mostrou as expectativas para o futuro. Afinal, depois desse dia, nada mais seria como antes.

A primeira lembrança foi do meu pai, e em como em meio a toda a alegria vivida durante os nove meses de gestação, faltou-me aquele abraço forte e orgulhoso. Imaginei aquele sorriso inapagável de avô abobalhado ansioso pela chegada do neto. Aí caíram as lágrimas ao visualizar um futuro impossível no qual Paulo e João Gabriel brincavam juntos, avô e neto, meu pai e meu filho. Mas, logo lembrei que, felizmente, há pessoas dispostas a fornecer ao meu filho esse amor físico que meu pai só poderá dar por espírito, e, então, o preto virou cinza. Mas deixo a certeza, Pai, que o João Gabriel sempre ouvirá falar de você.

Depois sorri quando pensei em minha mãe. Sorri por saber que esse amor ele terá oportunidade de receber, incondicionalmente, para sempre. Sorri mais ainda ao imaginá-lo dizendo estar com saudades da Vovó Lygia, e fazendo com ela o que bem entender, assim como o pai fez quando criança. Pensei na minha irmã, no meu irmão e em minha amada sobrinha. Pensei em como estamos reiniciando nossa família, e como temos todas as possibilidades de sermos felizes. Pensei na família da minha esposa, hoje minha família também, e no amor, igualmente incondicional, que eles reservam ao meu filho. Pensei nos amigos, e nos filhos que eles terão, formando também, ao nosso lado, suas famílias.

Enfim, pensei na Renata, minha amada esposa, e no presente que dali a pouco ela me daria. Pensei na inevitabilidade do destino e em como as coisas já estão escritas. Lembrei de cada minuto desses 6 anos juntos, e em como eles virarão 60 um dia. Aí desabei quando vi nosso futuro. Um choro alegre, vindo de um homem feliz e completo, que enxergou nada mais que felicidade.

E, finalmente, quando a enfermeira chamou “acompanhante da Sra. Renata”, a única coisa que veio a minha cabeça foi a resposta: “Para sempre!”

TE AMO JOÃO GABRIEL! VOCÊ É A LUZ NO INÍCIO DO MEU TÚNEL!

O Passo do Elefantinho

Os quase duzentos quilos de Vanusa eram um nítido incômodo em sua vida, mas nada que pudesse ser comparado às gozações a que era submetida. As pessoas pareciam não perder uma oportunidade que fosse para tecer comentários jocosos e humilhantes em troca de algum par de gargalhadas maldosas. Era o conhecido “perde-se o amigo, mas jamais a piada”.

Amigos, quem dera os tivesse. Fato era que o temor de achincalhamentos a fazia pouco aberta a novas amizades. Família, não tinha. Apenas um punhado de primos que fariam a ela mais mal do que a maior parte dos estranhos. Talvez a solidão fosse seu destino; e a comida, sua melhor amiga.

Após anos de procura e incontáveis “nãos” muito mal justificados, Vanusa conseguiu um emprego de recepcionista, e, por mais incrível que pudesse parecer, numa clínica de emagrecimento. Talvez ela servisse como psicologia reversa para as clientes, daquelas do tipo: “tome uma atitude ou fique assim”, mas o que importava era o salário no final do mês.

Como os carros, ao menos os populares, não eram apropriados para uma pessoa com seu grau de obesidade, Vanusa pegava, todos os dias, um ônibus até a clínica. E foi justamente isso que acabaria por transformar sua vida.

Cidade pequena pode ser um paraíso para muitos, mas, para alguns poucos, pode se transformar num verdadeiro inferno. Como as pessoas tinham os mesmos hábitos, horários e destinação, era comum encontrar no ônibus as mesmas pessoas indo e voltando do trabalho. Dessa forma, Vanusa encontrava-se, quase todos os dias, com Carlos. O homem, que tinha mais ou menos 40 anos de idade, era um conhecido piadista local e, fica desnecessário falar que viu, na obesidade da mulher, um prato cheio para piadas. Todos os dias assim que ela entrava no ônibus, lá vinha ele com comentários jocosos ou musiquinhas incovenientes do tipo: “Olha o passo do elefantinho…  veja como ele é bonitinho”.

E, assim, os meses se passaram, sempre com as piadas acompanhadas por uma boa dose de risadas e olhares maldosos. Mas, a vida é inexoravelmente surpreendente, e, um certo dia, a bebida e o sono de um motorista irresponsável colocaram o destino de todos os passageiros nas mãos de Vanusa. Após dormir ao volante e perder o controle do ônibus em uma curva, o motorista acordou assustado freando o coletivo desesperadamente. A atitude, apesar de evitar a queda do ônibus ribanceira abaixo, foi insuficiente para impedir que a parte da frente ficasse flutuando sobre o pequeno abismo. O motorista, então, percebeu que os passageiros deveriam se direcionar para parte de trás, a fim de evitar a queda mortal. As pessoas começaram a caminhar para trás, enquanto as portas eram abertas pelo motorista. Assim que Carlos se levantou, deparou-se com Vanusa no degrau da porta com um sorriso no rosto. Quando os olhares se tocaram, a obesa mulher abanou positivamente a cabeça e cantou: “Olha o passo do elefantinho…”, saindo imediatamente de dentro do ônibus. As outras pessoas não tiveram nem chance. Com sua saída, a traseira empinou e o coletivo capotou ladeira abaixo ao ritmo frenético de gritos desesperados. Quando, finalmente, o barulho cessou, dirigiu-se à beira do abismo olhando para baixo. A visão daquilo que sobrara, apesar de terrível, a fez sentir-se leve como nunca.

Via de Mão Dupla (microconto)

Sou outro, enfim! Na verdade, não efetivamente outro, apenas diferente. Sinto isso. Estou mais feliz. Recarregado pela esperança surgida nos que são capazes de se transformar. Como motor novo posto em lataria velha. Uma retífica na alma. Mudei. Por dentro. Por ti. Pra ti. Só lamento você ainda não ter mudado o suficiente para conseguir perceber tudo isso.

Published in: on outubro 23, 2008 at 1:05 pm  Comments (7)  
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Perigos da Natureza (miniconto)

– Não vá muito longe que essa floresta é perigosa, hein! – ordenou a mãe ao ver o filho se distanciar.

– Só vou até o riacho brincar um pouco. – respondeu o filho.

A mãe preparava o almoço dos dois quando ouviu a voz do filho chamando por ela. Sentiu aquele calafrio na espinha, o mesmo que sentia todas as vezes em que algo ruim estava para acontecer, e partiu em direção ao filho que se encontrava sentado perto das pedras que margiavam o riacho, observando algo do outro lado.

– Mãe, olha só que coisa mais linda aquele filhote. Que animal é aquele?

– Filho, não chega perto dele!! Esses animais são extremamente perigosos!! – bradou a mãe ainda correndo em sua direção.

– Imagina, mamãe. Olha só o tamanhozinho dele. Nem cresceu o pêlo ainda. Coitado, deve estar morrendo frio. Quem sabe podemos ajudá-lo? – disse o filho atravessando o riacho raso e indo em encontro ao outro.

A mãe apenas ouviu o estrondo ecoando por entre os galhos das árvores, mas já sabia  que ele significava o pior. Quando finalmente chegou ao riacho, viu o filho boiando no meio da água, envolto por uma enorme poça de sangue. Invadiu o riacho correndo e gritando “Meu filho! Você matou meu filho!! Por que?? Por qu…” Um segundo estrondo, similar ao primeiro, calou em definitivo o choro da mãe que caíra ao lado de seu pequeno filhote. Da ponta do rifle arcaico saía a fumaça que indicava o autor daqueles disparos fatais: um garoto de 13 anos.

O pai do menino também ouvira os disparos e agora chegava ao local saindo do meio da mata. Ao ver os dois ursos caídos, fitou o filho inundado em orgulho e acenando positivamente a cabeça:

– Esse é meu garoto!! Deixa o pessoal da cidade ficar sabendo disso!!

– Pai, você precisava ver – tagarelou o garoto – eu estava aqui desse lado e o urso filhote parou e começou a me encarar, daí ele veio pra cima de mim, e mostrou os dentes e as garras, vinha pra me matar com certeza, aí eu atirei nele e aí o outro maior chegou e tentou me pegar também, aí…

Então pai e filho saíram abraçados enquanto o garoto incrementava com orgulho a história que contava, afastando-se de outra família que mantinha um abraço bem mais mórbido nas gélidas águas correntes do riacho, sem nunca imaginarem a futilidade do motivo pelo qual haviam morrido.

O Amigo de um Amigo Meu (R.I.P.)

Hoje é uma manhã cinza de sexta-feira, apesar do sol. O coração nublado pela dor dá à barriga aquela sensação vazia, incompleta, de que algo não está no seu devido lugar. E não está mesmo. Ontem à noite, alguém nos deixou. Um amigo de um amigo meu. Seu nome era, é, e sempre será, Leopoldo.

Não tive muito contato com ele, mas posso afirmar com certeza que sempre fui recebido com muita festa por ele, como todos aqueles que o encontravam . Sempre bem-humorado, feliz, de bem com a vida. É difícil encontrar alguém assim nos dias de hoje, tão desprendido de tudo, dinheiro, casa, viagens. Seu único interesse? Amor! Foi sempre só o que pediu…e o que forneceu.

Na casa desse meu amigo estão todos tristes, arrasados, afinal Leopoldo vivia lá. Mesmo com a idade avançada, parecia criança pequena se divertindo. Se alguém perguntar ao meu amigo qual a principal qualidade de Leopoldo, ele responderá: companheirismo. E isso posso testemunhar que ele era mesmo. Sempre disposto, cheio de energia, alegre!

Mas tudo nessa vida é efêmero, e Leopoldo, assim como todos nós um dia, teve que partir para o próximo estágio, onde tudo é um pouco melhor. Ao meu amigo e sua família sobram saudades e lembranças. Memórias de toda uma vida de alegria, satisfação e acima de tudo amor incondicional. Lições deixadas por alguém que nos mostrou que todos nós poderíamos ser um pouco mais cachorros.

Published in: on setembro 12, 2008 at 11:57 am  Comments (14)  
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Quem Matou John Kennedy…da Silva?

Olá a todos! Como vão? Para aqueles que não me conhecem meu nome é John…kennedy…e eu sou esse corpo ensanguentado estirado no chão. O motivo para que eu esteja nessa situação? Eu contarei mais tarde. Preciso me concentrar agora. Minha cabeça dói muito. Muito mesmo. Nunca pensei que ferimento de bala ardesse. Mas arde. Mais que merthiolate. Olha pra mim aqui avoado de novo. Onde eu estava mesmo? Ah, sim! Minha atual situação. Bom, para entender o que aconteceu comigo acho melhor eu me apresentar primeiro.

Meu nome é John kennedy da Silva. Ele é uma homenagem óbvia ao famoso ex-presidente dos Estados Unidos na década de 60: JFK. O fato mais marcante em relação à passagem de Kennedy pela Casa Branca foi seu assassinato ocorrido no Texas, em 1963. O mais impressionante é que, até hoje, não se sabe quem, de fato, o matou. Fala-se em diversas conspirações, envolvendo desde terroristas até o próprio governo americano. Chegaram a prender, inclusive, um bode expiatório que, convenientemente, foi assassinado logo depois de sua prisão. Bom, mas deixa isso pra lá. É passado. O que interessa é que essa tragédia comoveu não apenas os americanos, mas milhares de pessoas por todo mundo, e meu pai foi uma delas. Eu nasci em 23 de novembro de 1963, um dia depois do assassinato. Foi quando meu nome, que já tinha sido escolhido, foi trocado para JK da Silva. Meu pai dizia que eu teria o mesmo sucesso que ele. Coitado. Se soubesse que a única semelhança entre nós seria o tiro levado na cabeça, talvez me desse outro nome. Se bem que Wellington era o nome preferido de minha mãe. Tava ferrado de qualquer jeito.

Bem que eu podia ter tido uma vida parecida com a de John Kennedy. Dinheiro. Fama. Inteligência. Mulheres. Ou alguém acha aqui que eu tive a competência ou a sorte de traçar uma Marilyn Monroe? Acho que só de vê-la eu já daria um tiro na cabeça. Que mulher. Por falar em tiro e em cabeça, voltemos ao meu caso. Peço desculpas. Está difícil controlar meus pensamentos. Sinto minha força se esvaindo cada vez mais. Bom, a verdade é que JFK e eu não temos nada em comum além do que já foi citado. O cara era carismático demais, entrava em um salão e todos paravam para escutá-lo e admirá-lo, já eu fiz mais inimigos que alguém pode querer em uma vida. Quando eu entrava em um lugar, todos paravam também, só que para me xingar ou me bater. Vida de pobre é difícil, quando esse não tem caráter então, fica insuportável.

“Talvez por isso que você esteja aí quase se afogando em seu próprio sangue”, vocês devem estar pensando. E podem estar certos de que é exatamente isso. Eu sempre busquei, inconscientemente, um final trágico para mim eu acho. Só não imaginei que seria dessa forma. Quantas vezes não me imaginei chegando em casa e recebendo de minha “adorável” esposa uma xícara de café banhada em barbitúrico. Vendo seu sorriso no rosto com uma visão embaçada, enquanto cambaleava para o repouso final. Algumas mulheres não perdoam traição. Vocês nem sabem quantos cafés o Barnabé, nosso cachorro, tomou quando era vivo. Tantos que acabou morrendo. Coitado. Insônia crônica. Estivesse vivo hoje, com certeza estaria me fazendo companhia nesse momento, enquanto, claro, lambesse todo o sangue espalhado.

O Matos, meu sócio, então. Sempre esperei dele algo…bom, na verdade, dele sempre esperei algo meio que parecido, meio traiçoeiro, me atacando por trás com uma paulada na cabeça. O motivo seria mais que óbvio, além de eu roubá-lo constantemente, minha esposa, apesar de intragável, tinha uma bunda…Porra, posso falar com tranquilidade…uma bunda que nem a Marilyn Monroe tinha! É Sr. Kennedy, nessa particularidade aqui, seu genérico brasileiro deu um banho em você. Olha, a bunda era tão boa, mas tão boa, que eu to aqui deitado no chão com um tiro no cucuruto, e tô gastando meus últimos respiros pensando nela. É, se meu sócio me apagasse seria por causa daquele belo par de almofadas.

Outro que eu sei que adoraria me apagar era meu filho. Isso mesmo, meu filho. Pra vocês verem só como minha vida não era a moleza da minha versão americana. Claro que eu tenho minha parcela de culpa, afinal não é todo mundo que come a própria nora. Mas chegar ao ponto de jurar de morte o próprio pai por causa disso? Aí, acho que é exagerar, vocês não concordam? Porra, mulher tem várias! Pai é só um! Além disso, vocês não conheceram o pedaço de mau caminho que era a Darlene, Deus a tenha. Aquela menina tinha mais fogo no rabo que o diabo no inferno. Jesus. Cheguei até a ter um taquicardia em um de nossos encontros. Devia ter morrido. Morrer com o rosto enfiado em um par de seios seria bem mais prazeroso do que…GASP!…do que ficar aqui com esse sangue preso na língua. Já tentei me virar, várias vezes, mas meu corpo não me obedece. Acho que é o fim se aproximando.

Agora chega de falar…estou cansado…com sono…muito sono…sinto que chegou minha hora…droga! Cadê a Cida? Justo hoje a empregada resolve atrasar! Queria ter forças para lhe contar tudo…Que cansaço…a cabeça não dói mais como antes…não acho que isso seja bom…O que foi isso? Um barulho! Será que é a Morte já vindo para ceifar minha alma? Ouço passos…é ela…com certeza é ela…Au! Minha cabeça! Quem que está berrando desse jeito? Ai, minha cabeça de novo. Ué? A Morte não grita. Deve ser outra pessoa então. Cida! Você chegou! Tento gritar para chamar atenção: Cida! Cida! eu penso, mas a boca solta apenas grunhidos sem sentido. Que triste é terminar falando a língua dos porcos! Na mesa!…Olha na mesa!…eu tento alertar, mas não tenho mais forças. Agora sim a Morte chegou. Cida, por que você não fechou a porta, mulher de Deus? Céu ou inferno? Cara ou coroa. Droga! Deu coroa.

A mulher de pele negra e enrugada ainda gritava em desespero pedindo socorro. Os vizinhos começaram a aparecer enchendo a sala de curiosos que encaravam aquele corpo sem vida. Um deles, fã incondicional de C.S.I., pedia aos outros cuidado com a cena do crime. Qualquer mudança poderia influenciar diretamente as investigações policiais. Quem teria feito isso? – ele se perguntou ao levar a mulher transtornada para sentar na mesa da sala. Saiu em busca de uma água com açúcar e quando voltou avistou um pedaço de papel em meio às frutas que decoravam a mesa. Pegou o pedaço de papel e sentou. Certas notícias não deveriam ser recebidas em pé. Já imaginava seu conteúdo. Tomou coragem e abriu o papel:

QUANDO MUITOS O QUEREM MORTO, TALVEZ O MELHOR MESMO SEJA MORRER!

Nada mais.

Caso Resolvido, concluiu o homem.

Tarde Demais

Hélio passava mais um daqueles finais de tarde agradáveis. Um happy hour com seus companheiros procuradores regado à cerveja, futebol e discussões sobre os casos em que atuavam em defesa do estado. A conversa tomou um rumo mais sério quando Hélio expôs aos colegas algumas ameaças anônimas que vinha sofrendo nas últimas semanas. Elas eram assustadoramente reais, especialmente quando a voz aterrorizante relatava, com detalhes, a intimidade da família. Tinha conhecimento das aulas de balé da filha, das aulas de teatro da esposa, da escolinha de futebol frequentada pelo filho. Sabia, inclusive, horários e itinerários das pessoas da sua casa. Sentia-se intimidado por tudo isso, mas não podia demonstrar, afinal de contas, todos sabiam, mais de 90% das ameaças eram apenas palavras jogadas ao vento.

Continuaram a conversa por mais alguns minutos até o momento em que seu celular tocou. Levantou-se para fugir do burburinho que o impedia de entender com clareza o que lhe era falado do outro lado da linha. Os amigos perceberam a súbita mudança de semblante que veio acompanhada pela palidez do rosto sempre bronzeado pelo sol. Com certeza eram más notícias. Tiveram a comprovação disso quando viram Hélio bater em disparada em direção ao carro, providencialmente, estacionado à frente do bar. Enquanto corria puderam ouví-lo cuspir algumas palavras em meio ao desespero – “Meu Deus…minha mulher…” foi o que conseguiram captar.

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O nariz escorria uma gosma líquida e branca que mudava sua tonalidade ao juntar-se ao sangue que caía da boca. Aquele era o terceiro tapa que a mulher levava na cara daquele estranho e assustador homem à sua frente, e seu rosto já revelava marcas profundas o suficiente para levar semanas até desaparecerem por completo. A violência era tamanha que a fazia acreditar em qualquer ameaça que fosse expurgada por aquela fétida boca. A dor já incomodava, e somada ao hálito proveniente daqueles dentes negros e podres, transformava essa experiência em algo que beirava o insuportável.

Estava sentada em uma cadeira de madeira com as mãos amarradas para trás. Os pulsos estavam envoltos por várias voltas de uma linha fina, branca, igual às utilizadas pelas crianças ao empinarem suas pipas, mergulhada por inteiro em cerol – uma mistura de cola com vidro moído que torna a linha extremamente afiada – o que impedia que a mulher forçasse os braços na tentativa de estourar a linha, mas não evitava os pequenos cortes banhados de sangue em seus pulsos.

Alguns minutos se passaram sem que fosse novamente atormentada. O homem de voz grave e imperial e uma força descomunal – ao menos para ela – havia se retirado do quarto em que ela estava amarrada, há alguns minutos e o silêncio do cômodo era quebrado apenas pelo arquejar inadvertido causado pela dor dos ferimentos. Talvez ele tivesse ido embora. Talvez aquilo tudo fosse somente um susto, nada mais. Ainda não entendia o que aquela pessoa queria, sabia apenas que tinha sido obrigada a dar aquele telefonema.

Suas esperanças de que seu torturador tivesse deixado o apartamento esvaiu-se com o ranger produzido pela porta do quarto ao ser aberta. Na cara do malfeitor um sorriso estranho, diferente…e um tanto sádico.

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Depois de fazer algumas conversões proibidas no intuito de fugir do trânsito e ultrapassar alguns cruzamentos protegidos por faróis vermelhos alimentado pela pressa, Hélio decidira parar o carro em um canto qualquer e seguir a pé. Seu destino não era longe, mas alcançá-lo a tempo de evitar o pior tornava a jornada árdua e extenuante. A gravata já com o nó da gola amolecido bailava contra o corpo do procurador seguindo o ritmo imposto pelo vento e pela pressa do homem que já suava compulsivamente pela testa. O tempo agora era seu inimigo, e a pressa, neste exato momento, era a melhor amiga da perfeição.

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A mulher despertou ofegante com o banho de água que acabara de sofrer. Havia desmaiado durante a última sessão de pequenas torturas – ainda não sabia qual era pior, se a tortura física ou a psicológica – o que fizera com que aquele miserável enchesse um balde com água gelada e encharcasse seu corpo com o líquido frígido. O frio que sentia era tamanho que a trêmula mulher, que tinha agora a pele toda enrugada, nem sentia o queimar intenso causado pelos ferimentos assim que estes eram tocados pela água esparramada.

– O QUE VC Q..QU..QUER CO..CO..COMI…MI..GO? – perguntou a mulher batendo os dentes uns contra os outros como uma caveira falante.

– Com você? nada! – respondeu o homem com escárnio – apenas me divertir um pouquinho, enquanto tenho que esperar… – finalizou misteriosamente.

– Es…pe..pe..rar o que..que? P..P..POR FA…FAVOR, AO ME..ME..NOS ME DIGA O QUE ES..TA..TÁ ACONTECE…CENDO! Eu p…preciso sa… – antes mesmo que pudesse terminar o raciocínio a mulher novamente apagou, o que comprovava que para ela, a pior tortura estava sendo mesmo a psicológica, já que, dessa vez, o homem nem a havia tocado ainda.

Ele, então, abriu um novo sorriso, diferente do primeiro, um pouco mais revelador. Aquela era a cara produzida por alguém que acabara de ter, o que julgara ser, uma boa idéia. Sim. Ele tinha tido uma ótima idéia. Para ele, pelo menos. Olhando o corpo desfalecido e desprotegido daquela singela dona-de-casa, pensou em como lhe causara sofrimento desde que chegara àquele local, então nada mais justo que, agora, a fizesse extasiar de prazer.

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Hélio corria, corria, corria. Cada vez mais depressa. “Estou chegando, meu amor” pensava ele. Logo, logo estaria lá. Como podia ter deixado esta situação se desenrolar. Ela não o perdoaria nunca. Mas já estava perto. Muito perto. Só esperava que não fosse tarde demais.

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A mulher que anteriormente havia voltado a si com um banho de água fria, dessa vez recobrava os sentidos com outro banho, só que este diferente e mais repulsivo, recheado de saliva. Sua boca era invadida pela língua grossa e áspera do rapaz, e seu hálito era tão atordoante que, não fosse o nojo que sentia, teria desmaiado novamente. Sentiu um embrulho no estômago e torceu para que vomitasse na boca daquele infeliz, mas o enjôo passou depressa. Só aí percebeu que sua mão direita agora estava presa em outro lugar: dentro das calças dele. Enquanto estava “fora-de-área” o miserável desamarrou sua mão direita – a esquerda permanecia amarrada pela linha com cerol ao pé da cadeira – e a colocou em seu pênis já inflado pela ereção. Tentou tirar a mão, mas foi atingida por um soco forte o suficiente para abrir contagem a qualquer pugilista profissional. Ficou meio inebriada com a agressão facilitando uma nova introdução daquela língua asquerosa em sua boca.

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“arf…arf…es…tou…che…gando…arf…arf…meu…am…or…arf…arf!”

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O homem genuflexo gritava de dor enquanto levava as mãos à boca. o sangue vazava por entre os dedos revelando a gravidade do ferimento. A mulher o encarava com os olhos arregalados, invadida por uma insanidade animal e irracional. Na boca, a língua do agressor arrancada a dentadas. Dessa vez, o sangue que inundava seu rosto não era seu, e sim daquele desgraçado que, agora, chorava feito uma criança perdida da mãe. Levantou-se da cadeira, ainda com a mão esquerda presa o pé, acertando um joelhada no rosto do homem que caiu de costas acusando o golpe. Arrastou a cadeira por alguns metros em direção ao criado-mudo repousado ao lado da cama. O pulso esquerdo foi rasgado ainda mais pela linha cortante, mas el tinha chegado a um ponto em que a dor não era mais empecilho para nada. A tesoura que se encontrava dentro da gaveta aberta cortou a linha com uma facilidade invejável, mas ainda teria um outro trabalhinho.

A mulher caminhou tranquilamente em direção ao ex-torturador, agora não mais que um bebê chorão, e ao vê-lo soluçar em desespero, pensou em como ela resistira ao sofrimento de uma forma mais honrosa. Teve vergonha por ele. Na sua opinião, o pré-requisito básico para alguém se tornar um torturador deveria ser sua resistência pessoal à dor. Pelo visto, não era. Chegou ao lado do homem ajoelhando-se com o corpo dele entre suas côxas. Não hesitou, apenas levantou sua mão direita – a mesma que ele escolhera para satisfazer seus desejos sórdidos – e enterrou a tesoura em seu pescoço.

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Hélio passou como uma locomotiva pela portaria da entrada seguindo imediatamente em direção à escada. Ela era acarpetada e circular o que tornava a subida mais cansativa e mais demorada do que gostaria.  Ao terminar de subir todos os lances, apoiou-se na parede buscando forças para engolir o coração que já quase lhe fugia pela boca. Com as mãos agora em cima dos joelhos, olhou para frente e observou duas crianças em pé, apoiadas em uma pequena mureta de madeira. O barulho de sua chegada fez com que o menino olhasse para trás, vendo o pai ofegante comas mãos nos joelhos, e a camisa ensopada pelo suor. O cabelo também estava esvoaçado o que lhe causava estranheza já que seu pai sempre usara gel.

– Papai, corre! Corre que está acabando! – gritou o garoto alertando Hélio.

Hélio caminhou vagarosamente até a mureta que abrigava o mezanino, e só então percebeu o teatro lá embaixo completamente lotado. No palco, a esposa, abraçada a um homem com uma tesoura de plástico pendurada ao pescoço, agradecia o público que os ovacionava em pé. A luz do teatro acendeu-se com a entrada do resto do elenco, que ,agora junto aos dois protagonistas, também faziam reverências à platéia enlouquecida. Foi quando Hélio observou a esposa lá de baixo encarando fixamente o mezanino do teatro. O homem acenou para esposa – que retribuiu animadamente o gesto – dando graças a DEUS por ter chegado a tempo. Ainda demoraria para ela deixar o camarim, o que dava tempo de pedir aos filhos, além de segredo pelo atraso, um resumo detalhado sobre a peça que acabara de ocorrer. Então, franziu a testa ao lembrar que teria de lhe contar sobre as ameaças que vinha sofrendo. Mas não hoje. Não hoje.

Que Sortudo era Hamlet!

Uma das citações mais conhecidas do planeta vem da peça teatral Hamlet escrita por William Shakespeare. Nela, o personagem principal, depois de ver a mãe casando com o assassino de seu pai, depois de matar acidentalmente o pai de seu grande amor, e após ver a mãe morrer ao tomar um veneno destinado a ele, exterioriza sua dúvida entre a vontade de viver ou morrer, indagando: “Ser ou não ser? Eis a questão”. Com todo respeito ao príncipe dinamarquês, mas depois dos longos minutos na sala de ultrassonografia hoje, há dúvidas muito mais aflitivas do que a simples decisão entre a vida e a morte.

Com certeza, Hamlet nunca se sentou em uma salinha de 10 metros quadrados, esperando a resposta sobre o sexo do bebê tão aguardado. Naquela época arcaica, sei que todos tinham que esperar 9 meses para descobrir qual o sexo da criança, mas tenho certeza que esses meses passavam bem mais rápido que aqueles longos minutos naquela micro-sala.

Que sortudo era Hamlet!

Para começar, devo afirmar que o dia de hoje começou, realmente, ontem à noite. Por volta das 23:00hs, para ser mais específico. A hora em que fui, tola e inocentemente, tentar dormir. Toda vez que começava a pegar no sono, era acordado pelo estrondo causado pela queda de uma agulha de costura no chão da cozinha, ou pelo barulho em uníssono causado pelos coturnos dos ácaros marchando em meu travesseiro. Resumindo? Mal preguei os olhos.

Que sortudo era Hamlet!

Depois, sobrevivi ao combo trânsito/sala de espera/atraso no horário da consulta, sem arrancar o coração pela garganta. O desespero, cumulado à falta de sanidade, era tamanho que cheguei a pagar R$ 5,00 por um DVD-R virgem para gravar as imagens do ultrassom. E, aqueles que me conhecem, sabem que isso, para mim, assemelha-se a pagar R$ 50,00 por um Big-Mac.

Que sortudo era Hamlet!

Enfim, fomos encaminhados à uma pequenina saleta. Muitas horas depois (leia-se poucos minutos), aparece a médica responsável pela notícia mais aguardada da minha vida. Mais do que a escalação do Corinthians em uma final de campeonato. Ela chega calma, andando lentamente, fingindo não perceber a ansiedade respirada no local. O antigo Ragazzo teria vontade de dar uma voadora nela por trás, enraivecido pela demora, já o atual, pensou se ela não queria que eu buscasse um cafézinho enquanto realizava o exame.

Que sortudo era Hamlet!

Foi então que a médica começou a movimentar a pá do aparelho de ultrassom, espalhando o gel por toda aquela barriga maravilhosa, Reino Encantado da criaturinha mais linda que o mundo ainda não viu. Enquanto ela media tamanho do estômago, fêmur, cabeça, ritmo dos batimentos cardíacos, minha mente viajou para longe, bem longe dali. Fui para um mundo em que me via levando o garoto ao jogo de futebol; um mundo onde aguardava sentado na platéia, a apresentação de balé da minha filha; um mundo onde imaginava meu sorriso com a perda da virgindade do meu filho, ou meu desespero ao saber que minha princesa se transformara em uma mulher. Até que veio uma calma avassaladora. Uma paz de espírito difícil de ser traduzida. Pois naquele mundo, qualquer que fosse o cenário, eu me via como um pai feliz. E então, veio a notícia! Nem lembrei mais de Hamlet! O sortudo, agora, era eu!

A emoção que senti acredito ser intraduzível, mas, como escritor, aceitarei o desafio: PAZ! Em seu mais pleno efeito. Todos os problemas desaparecem, todas as preocupações nos abandonam, toda raiva é eliminada, dando espaço a um tipo de amor novo, diferente, compulsivo. Tudo cai para segundo plano. Podem ter certeza que o conceito de PAZ foi criado por uma pessoa que, naquele momento, passava pela mesma situação.

Quanto ao sexo do bebê, eu poderia, claro, revelá-lo nesse texto, mas o objetivo de um escritor é tentar passar aos seus leitores, através de palavras (ou pela ausência delas), todas as suas emoções, e espero que, mantendo o segredo, vocês consigam ter uma vaga noção da aflição que senti naquela sala.

Aproveito para terminar esse texto, pedindo perdão pelo leviano (mas inevitável!) trocadilho feito com a obra do inigualável William Shakespeare, interpelando-os:

Menino ou Menina? Eis a questão!

Published in: on junho 23, 2008 at 2:36 pm  Comments (25)  
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Neves, Enfim, Apaixonado!

Todo reinado tem seu fim. Essa é a frase que serve para descrever a despedida de Neves da vida de solteiro. Quem diria que, ele, o galanteador convicto, um dia se entregaria aos laços do relacionamento monógamo. Foram anos e mais anos dedicando-se, exclusivamente, à caça dos mais diversos tipos de mulheres, desde as mais rechonchudas, até as mais desdentadas. Viajou, festejou, apavorou, mas seu dia, finalmente, havia chegado. Encontrara seu grande amor: Eliana.

E como todo paquerador inveterado, Neves, ao se apaixonar, passou de predador à presa. De dominante á dominado. De AA à aa. Foi impressionante. Não comia mais o que queria, apenas o Eliana indicava. Não via mais os amigos, somente os que Eliana permitia. Futebol? nem lembrava mais que esse esporte existia, afinal de contas, assistir a um jogo significava jejum à noite. Os amigos, inconformados a princípio, agora chegavam a ter uma certa raiva da transformação ocorrida no colega. Chamavam-no, ultimamente, de MarioNeves, em alusão ao fato do amigo fazer tudo que Eliana mandasse.

Os meses foram passando depressa, transformando-se em anos, poucos anos, mas suficientes para demolir todos os laços de amizade que o rapaz demorara décadas para construir. Neves, não tinha mais amigos. Havia se afastado de todos. Quando Eliana decidia sair sozinha, Neves ficava em casa, solitário, jogando video-game escondido da namorada. Certa noite, em uma boate qualquer, Mendes, um dos amigos esnobados por Neves, avistou Eliana dançando com um homem estranho. Não a viu beijando o sujeito, mas era evidente o clima de safadeza que circulava em volta de ambos. Viu quando os dois deixaram a boate de mãos dadas. Pensou em ligar para Neves, mas sabia que ele não acreditaria. Deixou o assunto para lá, com um forte aperto no coração.

60 dias depois, Mendes e alguns camaradas faziam um esquenta em sua casa, quando tocou a campainha. Era Neves. Abriu a porta e deparou-se com o amigo chorando aos cântaros. Em meio aos resmungos, soluços e rezingas conseguiu decifrar uma frase: “Eliana está grávida…de outro!!”. Os amigos ficaram boqueabertos. Sabiam que ela não era flor que se cheirasse, mas também não imaginaram que pudesse ser tão imprestável assim. Grávida de outro? No final das contas, a tal namoradinha não valia mais que uma moeda de 25 centavos. Todas as rusgas e mágoas sentidas pelos amigos para com Neves desapareceram na hora. Dedicaram aquela noite inteirinha a falar mal daquela infeliz. Foi quando Neves teve uma epífane. Visualizou um adesivo. Um adesivo prestando uma singela “homenagem” àquela sem caráter que partiu seu coração. Nele estaria escrito: “DEUS É FIEL…A ELIANA NÃO!”. Os amigos ficaram estupefatos. Sabiam que aquela idéia estava fadada ao sucesso.

Hoje, um ano depois, Neves se tornou um cara famoso, ganhou fortuna com os royalties recebidos na comercialização dos adesivos e sua invenção é referência nacional quando o assunto é a infidelidade feminina. Já Eliana, até onde se sabe, mora em um puxadinho de esquina na Zona Leste, e está processando um grupo de funk carioca por ter lançado, também em sua homenagem, uma música entitulada “Cachorra-Mor” que virou o grande hit do último verão.

 

 

Published in: on maio 6, 2008 at 3:00 pm  Comments (7)  
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Ah, Que Saudade do Meu Ernesto…

Ah, que saudade do meu Ernesto…

Saudade do meu companheiro, meu marido, meu amigo. Tantos anos passamos juntos, agora, há tantos outros estamos separados. A sua metade da cama permanece vazia, intocada, perfeitamente imaculada, preenchida somente pela melancolia e pelas lembranças de nossos momentos mais íntimos.

Ah, que saudade do meu Ernesto…

Saudade de seus acertos, mas, principalmente, de seus erros. Erros tolos, simplórios, e, por isso, tão humanos. Sinto falta da forma como você exibia seus defeitos, apenas para realçar minhas qualidades. Não pelo prazer de me sentir perfeita, mas pelo conforto de ser plenamente amada.

Ah, que saudade do meu Ernesto…

Saudade do amigo com quem compartilhava, desde os assuntos mais sérios, até as fofocas mais superficiais. Saudade do marido capaz de me inflamar ao mais leve toque. Que me fazia ruborizar ao revelar seus mais ardentes desejos, fazendo com que eu deixasse de ser a esposa e a mãe, mesmo que somente por alguns momentos, e me sentisse apenas mulher. Saudade do pai dedicado e disciplinador, capaz dos gestos mais sublimes, e dono de um amor incondicional.

Ah, que saudade do meu Ernesto…

Saudade das confidências, do abraço na varanda, do cafuné ao pôr-do-sol. Seu traços mais marcantes xerocopiados no rosto de nosso filho, faz-me lembrar de cada momento que passamos juntos. E que trabalho soberbo fizemos com nosso guri, hoje um homem honesto, de caráter indubitável, ótimo pai e marido. De fato, fizemos tão bom trabalho, que hoje ouso pensar mais em mim. Não quero mais sentir sua falta. Estou cansada. Muito cansada. Quero sossego. Quero teu colo.

Chega de Saudade. Não quero mais esse negócio de você longe de mim. Pode abrir os braços, meu amor. Eu estou chegando.

Olga colocou papel e caneta de lado. Acomodou-se na cama, reclinando com dificuldade as costas no travesseiro da cama. No criado-mudo, um belo abajur de porcelana iluminava o retrato do marido. Deitou na cama, repousando a cabeça no travesseiro previamente arrumado, retirando com cuidado a foto de dentro da moldura. Arrancou, um a um, os diversos eletrodos presos ao seu tórax, que monitoravam seus batimentos cardíacos. Retirou das veias do braço, as agulhas que introduziam soro em seu corpo. Colocou a foto em seu peito, cruzando os braços. Não poderia se despedir de seu filho Álvaro. Ele não a deixaria partir. Derramou uma última lágrima, antes do silêncio ser cortado pelo apito agudo do monitor cardíaco externando a ausência de pulsação.

Poucos minutos se passaram antes que o filho percebesse o ocorrido. Entrou correndo no quarto, deparando-se com o corpo enrijecido de Olga. No rosto pairava um ar de leveza, banhado por um sorriso de satisfação. Ao lado do corpo, o emaranhado de fios e eletrodos. Sobre o corpo, planava a foto de seu pai. Havia entendido tudo, e respeitava a decisão da mãe. Acendeu o abajur e avistou o papel deitado sob a caneta esferográfica. Aproximou-o da visão, lendo:

“Ah, que saudade do meu Ernesto…”

 

                                                                 FIM

Peço a todos aqueles que lerem esse conto, o pequeno trabalho de tecer um comentário sobre o mesmo, expondo suas críticas ou elogios, uma vez que inscreverei o mesmo em um concurso de contos, que tem como tema a frase “Chega de Saudade: Não quero mais esse negócio de você longe de mim” em homenagem aos 50 anos da música “Chega de Saudade”, composta por Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Sua opinião é de suma importância para este humilde escritor.

 

Published in: on abril 28, 2008 at 3:07 pm  Comments (15)  
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O Padre e a Ninfo

Agostinho vinha caminhando lentamente pela praça central da cidade em que morava. Atrás dele pairava imponente a imagem da Catedral local, construída em meados do século XVIII, e tombada como Patrimônio Cultural do país. Vestia uma batina marrom clara que contrastava com o intenso calor que sufocava a cidade naquela manhã de verão.

Enquanto limpava o suor do rosto com um lenço branco já totalmente encharcado, foi abordado por uma mulher robusta, repleta de curvas que estavam completamente à mostra, agora que seu vestidinho branco grudava na pele, em virtude do suor produzido pelo corpo. Ela agarrou o braço de Agostinho em desespero, pedindo ajuda:

– Padre, por favor, o senhor tem que me ajudar. Eu preciso me confessar urgentemente. Eu sou uma pecadora sem salvação. – Agostinho tentou responder, mas foi suprimido pela agonia da mulher que o puxava pelo braço em direção à igreja. – Padre, ou senhor ouve minha confissão, ou eu vou acabar fazendo uma besteira.

Apesar de aflita, a mulher ficara impressionada com a beleza e a juventude do clérigo que acabara de abordar. Ficou imaginando como podia um rapaz tão bonito e tão novo ter feito o voto de castidade. Recompôs o pensamento ao tropeçar no degrau da escadaria da igreja, e conduziu o sacerdote até o confessionário.

A moça arquejava intensamente enquanto aguardava o padre abrir a portinhola que os separava dentro do confessionário. Levou poucos segundos até que isso acontecesse, e sem pestanejar, começou a desabafar:

– Padre, meu nome é Samara, e eu acho que estou doente. Na verdade eu não acho, eu tenho certeza que estou doente. E eu já não sei mais o que fazer.

O padre parecia aflito sentado no banco de madeira do confessionário. Samara percebeu a aflição, mas acreditou ser em função da provável pouca experiência de que dispunha o jovem religioso. Ela esperou alguns segundos por alguma palavra, mas a demora do sacerdote a fez voltar a vomitar confissões:

– A verdade, padre, é que eu sou louca por sexo! Só penso nisso o dia inteiro. Vou à padaria comprar pão e acabo transando com o padeiro. Vou à feira comprar frutas, e lá termino eu fazendo amor em meio às bananas. Quando passo em frente a uma construção então, bom, é como um obeso em frente a uma doceria.

Agostinho estava com os olhos arregalados ouvindo atentamente as confissões da voluptuosa mulher. Tentou dizer alguma coisa, mas foi novamente interrompido pela avalanche de verdades cuspida por aquela pecadora em busca de redenção.

– Fato é, padre, que, ao vê-lo passando pela rua, tão novo, tão puro, tão apetitoso, resolvi abordá-lo. Imaginei-me tirando sua roupa aqui, dentro dessa igreja, e fui possuída por um tesão incontrolável. É algo que eu não consigo explicar, muito menos conter. Nunca transei com um padre, e isso me excita demais. Esse perigo me deixa queimando no meio das pernas. Me deixa insana!!! O que o senhor acha, padre? Devo lutar contra isso ou render-me a esse desejo?

– Minha filha – finalmente falou Agostinho – às vezes ELE se manifesta através de nossos desejos. Por isso, nem sempre, negá-los seja o caminho certo, assim como, nem sempre, sucumbir a eles seja, necessariamente, pecado.

Agostinho assustou-se quando a cortina que o separava do resto do mundo se abriu, revelando o corpo nú de uma pecadora novamente convicta. Samara parecia ter entendido o recado. Os seios volumosos e naturais captaram primeiro a atenção do rapaz envolto na batina. Era uma mulher de curvas insinuosas, que parecia cuspir um fogo capaz de ressucitar um defunto. Samara perdeu o controle ao perceber que a visão de seu corpo nú, havia causado uma ereção naquele jovem mensageiro de DEUS. Não esperou mais nenhum instante para avançar em cima do rapaz, que retribuía energicamente as carícias que recebia. Samara titubeou por um instante, ao lembrar que não carregava camisinhas na bolsa, mas lembrou-se também em como a igreja católica condenava o uso de preservativo, e ficou com medo de ofender o jovem católico.

Transaram, transaram e retransaram. Depois, transaram mais um pouco. Pararam apenas quando ouviram o eco de algumas vozes ao fundo. Samara, agora satisfeita, vestia orgulhosa seu inapropriado vestido branco, invadida por um sentimento de orgulho, ao ver o padre completamente entorpecido pelo que acabara de lhe acontecer. Foi embora feliz e confiante pelo fato de ter conseguido fazer um padre perder totalmente a cabeça por ela. Ainda estava com tudo. Iria para casa, mas não sem antes, dar aquela passadinha básica em frente à construção na esquina.

Agostinho vestiu a batina – que era um “vestido” bem mais apropriado que o usado por aquela “pecadora” – e seguiu para fora da igreja e rumo à sua casa. Caminhou alguns minutos até chegar à sua residência. Ao abrir a porta, deparou-se com a figura de uma mulher de aproximadamente 50 anos de idade, sentada no sofá com cara de pouquíssimos amigos.

– Muito bonito, hein, “Seu” Agostinho!! Isso são horas de um garoto da sua idade chegar em casa? Aqui não é pensão para sair à noite e voltar depois do nascer do sol!! Pode ir já para o seu quarto!!

Agostinho estava completamente exausto, e, por isso, obedeceu sem esboçar reclamação. Estava caminhando para o quarto quando parou ao ouvir uma última pergunta vindo da mãe:

– Pelo menos essa tal festa à fantasia foi boa?

O garoto abriu um sorriso de satisfação, ao mesmo tempo em que lamentava não ter sido o pai quem tivesse feito essa pergunta:

– Boa, mãe. Muito boa! – finalizou antes de ir dormir.

 

Crônica de uma Saudade

Pai, sinto muito sua falta. Muito mesmo. Gostaria de ainda tê-lo ao meu lado. Gostaria de poder aprender um pouco mais com você. Quantas vezes você me deu conselhos certos e verdadeiros, que eu deixei o vento levar. Quantas vezes eu te disse não, quando não me custaria nada lhe dizer sim. Quantas vezes me disse sim, quando o mais fácil era ter me dito não.

Fico pensando o que eu mudaria se tivesse chance: meu jeito, minha boa-vontade, meu companheirismo. Sei que me amava, independentemente dos meus defeitos, mas poderia ter tido menos deles. Ou, ao menos, lhe mostrado mais minhas qualidades. Recebê-lo mais vezes com sorriso, e menos vezes com indiferença. Mais vezes com abraços, e menos vezes com acenos. Acredito ter sido um bom filho, mas tenho certeza de que poderia ter sido muito melhor.

Tantas foram as vezes em que deixei de ficar ao seu lado por algo fútil ou sem importância. E hoje, por ironia do destino, trocaria tudo só por mais alguns minutos com você. Preciosos minutos. Minutos de redenção. Inúmeras foram as oportunidades de lhe dizer o que sentia, e nem sempre aproveitei. Hoje, esses poucos minutos bastariam. Queria ter sido mais filho, e menos humano. Você se foi e levou consigo um pedaço do meu coração. Desculpe não dá-lo por inteiro, mas ainda estou cercado por pessoas que me amam, e também precisam do meu amor.

Às vezes me pego, na calada da noite, chorando sua ausência. Outras vezes, rio sem perceber, invadido pela memória de tudo que vivemos juntos. Na maioria das vezes, apenas torço para ter me tornado alguém de quem você possa se orgulhar.

Queria lhe dizer, também, para ficar tranquilo. Aqui embaixo me cerquei de pessoas carinhosas, que sempre me ajudaram a superar obstáculos. Um padrasto companheiro e amigo, um novo “pai” exemplar, uma porção de amigos que juntos formam um conjunto de suas maiores qualidades. Não podia ter superado sua perda sem eles. Além disso, a aproximação que meus irmãos e eu tivemos, facilitou bastante essa passagem para mim. Acredito estarmos muito mais unidos hoje. Pena, também, você não ter tido a oportunidade de ter conhecido sua nora. Definitivamente, uma grande mulher. Ela me fez uma pessoa muito melhor.

Poderia continuar escrevendo por horas, pois estou abarrotado em sentimentos diversos: alegria, tristeza, alívio, receio, principalmente, amor. Mas quero ligar para minha mãe e dizer que a amo. Já faz um tempinho que não digo, e não quero cometer o mesmo erro, afinal a amo tanto quanto sempre o amarei.

Ricardo Ragazzo

Esse texto é uma homenagem à memória de Paulo Roberto Ragazzo, acima de tudo PAI.

Published in: on abril 10, 2008 at 12:21 pm  Comments (15)  
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A Mulher do Ufólogo

Dalva e Laerte formavam um casal diferente. Ele sempre fora um solitário ufólogo de fama internacional, mas sem muitas relações inter-pessoais. Já Dalva era o oposto. Uma mulher briosa, simpática, fazedora constante de amizades, e de papo extremamente agradável. Porém, sempre fora uma moça cercada de mistérios.

Havia aparecido na pequena cidade de Jotalhão subitamente. Sem lenço, e sem documento. Uma mão na frente, e outra atrás. Aliás, quando disse anteriormente “sem documento”, referi-me ao sentido literário da expressão. Dalva não tinha registro geral, nem muito menos cadastro de pessoa física. A única coisa que carregava ao chegar à cidade era um enorme corte na cabeça, além de uma evidente amnésia, possível resultado do ferimento. Talvez, em uma cidade grande, o incidente de Dalva e sua ausência de documentos (consequências de um provável roubo), fossem melhor esmiuçados, mas, em Jotalhão, as coisas eram muito mais brandas.

Pouco tempo havia se passado e a cidade já tinha abraçado a nova filha. E nem houve muito tempo para as peçonhentas “carolas” da cidade, injetarem seus venenos com comentários maldosos (pura inveja em virtude da beleza da recém-chegada), pois essa, estranhamente, e para surpresa de todos, apaixonou-se logo por Laerte, o Ufólogo.

Laerte era um homem respeitado no mundo da Ufologia, era referência mundial nos estudos sobre a possibilidade da existência de vida fora da terra, e era chamado para um sem número de palestras por todo país. Porém, na pirâmide social de Jotalhão, pairava um degrau abaixo de Moisés – o profético mendigo local.

Mas os dois se conheceram e se completaram. “O amor é a forma mais democrática da loucura”, diziam alguns inconformados. Fato é que, em menos de 6 meses, Dalva e Laerte estavam matrimoniados. O casamento, inicialmente, foi soberbo. A mulher era regada à bons tratos, e desejada à “maus tratos”. Todavia, o tempo foi passando e Dalva foi deixando, cada dia mais, de ser uma novidade para ele. Isso somado ao aparecimento sem precedentes de um cometa, fez com que a relação do casal esfriasse.

Vinte anos se foram, seguindo essa mesma toada de indiferença, falta de desejo e atenção por parte do Ufólogo, que, dispendia a maior parte do seu tempo concentrado em seus estudos e pesquisas. Às vezes, Dalva dizia ao marido que, ficar olhando a mandioca plantada, não a fazia crescer mais rápido, uma nada sútil metáfora referente ao fato dele passar, noites e mais noites, olhando para o espaço em seu telescópio de última geração, ao invés de prestar atenção na própria esposa.

Certa vez, quando preparava-se para ir ao seu pequeno observatório situado na zona rural de Jotalhão, foi surpreendido com a notícia da companhia de sua esposa. “Já que Maomé não ia à montanha…” concluiu Dalva. Naquela noite, a presença de Dalva foi ignorada, tanto quanto um pote de requeijão repousando na geladeira de alguém intolerante à lacticínios. Ela, então, acabou por perder a paciência, discutindo seriamente com Laerte, e pegando suas coisas ao deixar o observatório. E nunca mais voltou. Dalva sumiu sem deixar vestígio algum. Laerte demorou algumas horas até perceber o desaparecimento da mulher, mas quando notou o que havia acontecido, desesperou-se. Amava-a muito. Apenas não sabia como demonstrar aquele sentimento.

Enquanto isso em algum lugar do Universo…

– Finalmente você concluiu seus trabalhos! – disse um ser bizarro em uma língua indescritível.

– Demorou um pouco mais do que o esperado, houve contratempos…- justificou-se Dalva enquanto arrancava o próprio rosto para revelar toda semelhança física com seu inquisitor.

– Vinte anos humanos não é muito tempo, mas é mais do que suficiente para chegar à uma conclusão. Então, o que você concluiu em sua pesquisa? indagou a criatura.

– Não há perigo algum. Pelo menos por um belo tempo. respondeu Dalva (ou seja lá o que for).

– Você sabe como os humanos podem ser perigosos. Eles parecem gafanhotos em plantações, quando acham um brinquedinho novo. Vejam só o que fizeram com a Terra. Não os queremos tão cedo xeretando em nosso planeta. Você tem certeza de que eles estão longe de descobrir que há vida fora da Terra?

A pergunta deixou Dalva absorta, refletindo sobre todo tempo que passara com Laerte, e como, surpreendentemente, se apaixonara pelo homem a quem devia investigar sobre as descobertas extra-terrenas. Passara a amá-lo tanto que teria lhe contado tudo que quisesse saber sobre o Universo, em troca de um pouco mais de atenção e carinho. Teria traído seu povo por amor. Um amor, afinal, não correspondido. Choraria se seu organismo permitisse. “Dalva” não possuía pálpebras. Engoliu os pensamentos, e friamente respondeu aquilo que toda mulher acredita ser a maior verdade de todas:

– Eles estão longe de desvendar os segredos de uma mulher, quanto mais os mistérios do Universo.

E de volta à Terra, Laerte nem imaginava que, caso tivesse prestado mais atenção em sua esposa, talvez hoje soubesse mais sobre Ufologia do que os humanos saberão em séculos. Ironicamente, ele resolvera abandonar a profissão para se dedicar integralmente à procura da esposa. Justamente agora que ela se encontrava no espaço.

O Lado Esquerdo do Cérebro

David entrou em casa suando de tão nervoso. As pupilas se retraíram com a claridade da pequena sala de reboco, contrastando com a noite que era engolida pelo mau tempo e pela chuva, tornando-a ainda mais obscura. O pai era policial e rapidamente notou o desespero nas feições do filho, indo ao seu socorro. O garoto arquejava conturbadamente enquanto amparava as costas contra a áspera parede da casa.

Visivelmente preocupado, o pai correu até a cozinha buscando um copo d´água com açúcar para o perturbado rapaz. Aflito, perguntou o que havia ocorrido, e o garoto, agora mais ponderado, caminhou até o sofá iniciando o relato dos fatos.

Ele costumava ir até à favela do Dendê visitar uma agradável cocota com quem estava enamorado. A menina era um pequeno esboço divino, segundo os comentários gerais, e David a havia conquistado. Até aí, não existia problema algum, exceto o fato dele viver na favela do Glicério, histórica rival no narcotráfico. Mas David não mantinha contato com nenhum traficante, portanto isso não o afligia muito.

E justamente hoje, ao visitar a casa de sua namorada, tinha sido surpreendido por uma incursão bélica por parte dos traficantes de sua favela, no morro dos Glicérios. A troca de tiros foi inevitável. David precisava voltar para casa e, com o aparente cessar de tiros, quis aproveitar a oportunidade para ir embora, mesmo com os apelos de sua garota para que ficasse. Enquanto descia os degraus da entrada principal, foi abordado por um elemento empunhando um 38. David prontamente afirmou não pertencer ao tráfico, dizendo ser apenas um trabalhador voltando para casa. O elemento começou a rir incessantemente. Claro que sabia que aquele homem frouxa não pertencia ao mundo do crime, mas sabia também que ele morava no mesmo morro em que moravam os invasores, e que ele namorava a mulher mais “pitelzinho” do pedaço. E essas eram justificativas mais-do-que suficientes para matá-lo. David fechou os olhos ao ouvir sua sentença de morte, e preparou-se para o pior. Estranhamente, escutou um barulho de disparo, mas não havi sentido dor alguma.  Abriu os olhos e viu seu executor caído no chão. A cabeça sangrava copiosamente, criando um rio de sangue em torno do homem alvejado. O tiro havia acertado a parte esquerda do cérebro, o que David achou interessante, pois essa era a parte do cérebro na qual tomamos todas as nossas decisões. E aquele garoto havia decidido matá-lo. e isso tinha ocasionado sua morte.

Enquanto ficava paralisado, viu o semblante de um homem caminhando em sua direção. Era Eustáquio – ou Frita-Kibe como era conhecido – um renomado traficante da favela do Dendê. Eram eles que estavam invadindo o morro dos Glicérios, e era ele que salvara sua vida. Frita-Kibe perguntou a David se ele estava bem. Olhou com desprezo para o corpo sangrando no chão e, após cuspí-lo, afirmou que ninguém além dele tinha direito de matar alguma pessoa de sua favela. Deu dois tapas nas costas de David, e pediu que ele fosse embora.

O pai de David ficou perplexo com a história narrada pelo filho. Eustáquio não passava de um traficantezinho de merda, e agora havia salvado a vida de seu filho. Não conseguiu dormir aquela noite. Devia a vida de seu garoto à um bandido, assassino sem remorso algum ou misericórdia. Ou quase sem misericórdia, afinal era exatamente isso que ele havia oferecido ao seu filho. Pensou muito e tomou uma decisão. Iria procurar Eustáquio e agradecê-lo por salvar a vida de David.

No dia seguinte, caminhou até o topo do morro, e lá encontrou o traficante. Apresentou-se como pai de David, e com um aperto de mão agradeceu seu “benfeitor”. Frita-Kibe ficou surpreso e comovido com a atitude daquele senhor, e iniciou um agradável bate-papo com ele. Alguns minutos depois, quando homem se virou para ir embora, perguntou o que ele fazia para ganhar a vida. O pai de David pensou em omitir o fato de ser policial, mas depois daquela prazerosa conversa e com o rapaz sabendo os motivos dele estar ali, decidiu contar a verdade. Eustáquio sorriu com aquele paradoxo, acenando com as mãos para que o homem fosse embora. E assim que o pai de David virou, foi alvejado por um tiro certeiro na cabeça. Bem ali no lado esquerdo do cérebro. Aquele responsável pelas decisões que tomamos.

A Escolha de Viriato

Viriato tinha uma vida comum e ordinária. Casado desde os tempos de faculdade, era um homem que pouco havia aproveitado a vida. Mulheres, só tivera uma – Dalila – a mãe de seu filho. Filho, aliás, motivo central para realização do matrimônio. Sua vida em casa assemelhava-se a um verdadeiro inferno. Dalila era uma mulher possessiva, ciumenta, de humor inconstante, além de péssima dona-de-casa. Não era raro voltar da repartição pública onde trabalhava há mais de 15 anos, e ainda ter que cozinhar seu próprio jantar.

Mas Viriato amava seu filho Sinval. O garoto de nove anos de idade havia puxado o humor e paciência do pai, e em pouquíssimas coisas lembrava a mãe. Sinval e ele dividiam os mesmos gostos e torciam para o mesmo time de futebol, o que tornava as idas aos jogos perfeitas, já que a mãe odiava o esporte. Sim, era o filho e aqueles deliciosos domingos a dois que o faziam aturar o convívio com a víbora.

Certa feita, chegou em casa do trabalho e deparou-se com um delicioso jantar à luz de velas. Um cordeiro regado ao molho de frutas vermelhas como prato principal – que só lhe dava menos água na boca do que ver sua esposa em uma camisola de seda quase que totalmente transparente. Fazia tanto tempo que não a olhava dessa maneira que já tinha se esquecido da formosura de seus traços.

Aquela noite havia sido inolvidável, assim como memorável seriam os próximos meses de seu relacionamento. Refeições nababescas com os mais variados pratos e temperos. Massagens subliminares que pareciam vir das mãos de um anjo. O mau-humor havia desaparecido. Assim como o ciúme também era coisa do passado. A vida nunca havia sido tão prazerosa. Até houve um certo domingo em que Dalila acompanhou ambos ao estádio de futebol revelando-se uma torcedora apaixonada.

O tempo foi passando e, numa tarde de sexta-feira, Viriato resolve surpreender a mulher ao voltar mais cedo do trabalho com um regalo em mãos. Ao chegar em casa, deparou-se com Sinval sentado na escadaria da frente, os olhos marejados de lágrimas. Correu até o filho, abraçando-o forte. Antes mesmo que pudesse perguntar o que havia ocorrido, ouviu inúmeros estrondos vindos de dentro da casa. Ao abrir a porta supreendeu-se com a enorme quantidade de vasos, pratos e copos esmigalhados em uma miríade de cacos espalhados pelo chão. Dalila estava sentada no sofá, soluçando tão intensamente que até o ar parecia tê-la abandonado. Gritava que queria ir embora dali. Viriato, cada vez mais aflito, ajoelhou-se em frente à mulher e passando a mão por entre seus embaraçados cabelos perguntou o motivo para tudo aquilo ali. Quase foi nocauteado pelas palavras da mulher, que confessava sem receio algum o caso que havia mantendo com Adolpho, um amigo que Viriato fizera no bar anos atrás. Seu coração remoía-se a cada declaração de amor dedicada pela esposa ao Amigo.

Transtornado pelo orgulho ferido, Viriato dirigiu-se à cômoda do quarto retirando um revólver 38 da gaveta de baixo. Mil coisas se passavam em sua cabeça enquanto caminhava em direção ao bar da esquina. Adolpho costumava passar suas tardes lá, jogando sinuca com colegas desempregados. As palavras de sua mulher invadiam seus pensamentos vez ou outra, mas sua mente apenas alimentava a idéia de matar o amante de sua esposa.

Entrou no bar já apontando a arma para o amigo, que levou alguns segundos até perceber o que estava acontecendo. Algumas pessoas correram para fora do bar enquanto outras se jogaram no chão do estabelecimento. Adolpho permaneceu em pé, petrificado, encarando o cano da arma com a mesma concentração do homem confrontado pelo seio de uma mulher. Já sabia o motivo daquilo estar acontecendo. Sempre achara Viriato um banana, e isso, somado ao fato de Dalila ser um pedaço de mau caminho, fez com que ele decidisse seduzí-la. Apenas não contava com um contratempo: Dalila havia se apaixonado por ele. Cobrava visitas cada vez mais regulares e tinha acessos épicos de ciúmes sempre que ouvia histórias dele com outras sirigaitas – termo usado por ela. Por isso, havia resolvido encerrar a aventura. E agora, depois de tudo terminado, Viriato resolvera cobrar o preço. Fechou os olhos e esperou pelo pior.

Viriato aproximou-se de Adolpho colocando o cano do revólver em sua têmpora. Sua boca quase tocando o ouvido do rapaz. Os olhos de Adolpho arregalaram-se ao receber as palavras proferidas pelo provável algoz. Com a arma apontada para cabeça do amante, Viriato exigiu que o rapaz retomasse o caso com sua esposa. Sob pena de morte. Sussurava em seu ouvido que Adolpho deveria estar à disposição de Dalila a qualquer momento, ou enfrentar sua ira de corno manso. Surpreso e com as calças molhadas, Adolpho concordou com a mórbida exigência. Viriato colocou o revólver de volta na cintura, deu dois tapinhas na cara do rapaz proferindo a palavra: “Bem-vindo à nossa humilde família”.

Voltou para casa com um sorriso no rosto, e ansioso para contar as novidades para a esposa. Graças a ele, Dalila recuperaria seu amante. A notícia fez com que a mulher ficasse radiante, enchendo-o de beijos. Agradecida, preparou para ele um jantar especial, seu prato favorito: Estrogonofe. Então, vendo a esposa extasiada saindo para fazer compras, Viriato acomodou-se no sofá saboreando uma cerveja gelada. Ao ver a felicidade da mãe, Sinval correu até o pai dando um forte, caloroso e apertado abraço. A mãe não mais os abandonaria. Levaria mais alguns anos até que percebesse o sacrifício do pai e quisesse ver a mãe longe dali. Mas, por enquanto, a paz havia retornado. Entre a sua felicidade e a do filho havia escolhido a segunda. E não estava nem um pouco arrependido.

Crônica de uma Rotina

 

 

Todos nós temos dias bons e ruins na vida. E quando um desses dias ruins nos martela, insistente e impiedoso, é comum ouvirmos palavras de apoio e de esperança daqueles que gostam de nós, assegurando-nos da noção de que amanhã será um novo dia e nada na vida é perene.

Mas será que “um novo dia” realmente existe? Para mim, às vezes, parece que o que faço é viver e reviver o mesmo dia continuamente. Algumas pequenas mudanças aqui ou ali, é claro, mas a essência fundamentalmente se repete. Tanto que posso relatar tranquilamente o meu dia-a-dia:  Todo dia eu levanto no mesmo horário, abro minha janela para economizar energia ( já se tornou uma nova rotina ), pego o meu aparelho abdominal, ponho o CD sempre na mesma música, e tento em 5 minutos de exercício, livrar-me de todas as cervejas da noite anterior. Tomo meu banho, pego meu carro e sigo a caminho do meu trabalho, sempre acompanhado da mesma pessoa. Poderia seguir através de páginas e páginas sobre as previsibilidades dos meus dias, mas se há algo pior do que viver nosso dia-a-dia, é escutar sobre a rotina dos outros. O que me levou à decisão de poupá-los.

Voltamos, assim, ao cerne da questão: o que seria um novo dia? Para mim, isso não existe. Claro que se encararmos pelo lado sentimental, teremos respostas como “é um dia a mais que você vive”, “é uma benção de Deus”, “é ter a chance de fazer a diferença”. Tudo bem! Agradeço a Deus por cada dia a mim concedido, mas esse não é o ponto em questão. A Rotina é algo presente na vida de todos. É uma prisão sem muros, celas e guardas. É como se fossemos livremente presos. Algumas pessoas podem pensar que não vivem sob seus efeitos, mas ela é inclemente, não poupando nenhum de nós.

Vamos todos os dias aos mesmos lugares, encontramos as mesmas pessoas e fazemos as mesmas brincadeiras. O próprio Planeta vive sob seus efeitos.  Afinal de contas, nosso planeta gira uma vez por ano em torno do Sol, não é verdade? E isso ocorre há milhões de anos. Então pergunto: Existe remédio para amenizar esse “mal”? Acredito que sim.  Mas, isso exige coragem para mudar, para enfrentar o novo. É ter coragem de esperar o inesperado, de perseguir o imprevisível e até lutar de olhos vendados, se preciso for. É ser um “David” enfrentando não apenas um, mas todo e qualquer “GOLIAS” que possa obstruir seu caminho. É saber lidar com o medo. É transformar a adrenalina em audácia. É perseverar em busca do incerto até transformá-lo em realidade.  É viver sem fronteiras ou limites em busca da verdadeira liberdade: A FELICIDADE. Enfim, é fazer tudo aquilo que ainda não tenho coragem de fazer, pois por um outro lado, fugir da Rotina seria abandonar minha segurança, minha tranquilidade. Além disso, não nos esqueçamos que sem a rotina não haveria o amor, apenas a paixão que é uma fase efêmera pré-amor. Talvez virar às costas para a Rotina seja virar as costas para o amor em sua essência. Amar é conviver e o convívio é rotineiro. Talvez a Rotina respeite apenas aqueles que desatracam do seu Porto Seguro rumo ao misterioso e enigmático horizonte. Quem sabe um dia eu tenha a coragem de desatar o nó da segurança e também parta rumo ao inesperado. Ou quem sabe, um dia, eu encontre um amor tão profundo que me faça querer que a Rotina me abrace e me proteja como uma mãe, me alimentando de amor através de seu cordão umbilical.  Por isso eu digo à todos:

COMO EU AMO A ROTINA QUE EU TANTO ODEIO

Published in: on março 10, 2008 at 7:08 pm  Comments (1)  
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